- Samuelson Xavier
A Agenda da Morte
Atualizado: 16 de mai. de 2021
Era uma vez um pobre que morria de fome. Certa manhã, um cirurgião americano o abordou na sarjeta. Propôs ao miserável despossuído que vendesse um órgão de cada par que tinha. O pobre aceitou. Pouco depois morreu de inanição e a sofrer amargamente sem os órgãos.
Esse pobre se chama Brasil.
A alegoria distópica já não se separa da realidade escatológica que vivemos, quando tudo que soa absurdo é apenas uma metáfora para o inominável, um esforço intelectual diante a impotência da linguagem para exprimir o mal indescritível que toma o mundo. A morte individual desdobra-se em morte de massa, e mais adiante em morte nacional. Acompanhamos deslumbrados o desmoronamento de valores sociais e formas de vida como o cliente bêbado de um bar sitiado em chamas. A crise profunda dentro da crise é a armadilha do fatalismo, pois muito mais danoso que o desastre também tem sido nossa inação permanente. Qual o sentido de um governo em meio a maior crise social-sanitária da história do mundo estar mobilizando multidões nas ruas, aumentando a impunidade parlamentar, propondo a privatização e liquidação do patrimônio público, sabotando a saúde e a educação públicas? Vê, a nuvem do caos nos fere e tenta encobrir os males de uma agenda pública antinacional.
O sofrimento humano e a injustiça em todas suas formas são historicamente aquilo que a ordem ética e política tentam superar, seja pela força principal do Estado ou de outras instituições. As nações nascem com esse sonho nobre de felicidade humana. E, se a felicidade humana para os povos é a plena realização dos sonhos e objetivos da nação, então o fracasso de um projeto coletivo como antessala da falência civilizacional é a grande agonia que precede as mortes nacionais. Triste fim de uma luta por soberania. Uma retórica racionalista travestida de ciência protagoniza esta desconstrução do Brasil. O neoliberalismo, forma bastarda do escravismo e autoritária variação do liberalismo econômico reducionista, tomou a hegemonia do pensamento brasileiro. A agenda da morte que pregam os neoliberais se estrutura em camadas de racionalidade perversa.
A ideia de ajuste fiscal, que na verdade é a desmobilização do investimento público, o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social, o contingenciamento de gastos sociais em todas esferas essenciais. Sobre o argumento da responsabilidade fiscal e da eficiência no gasto cria falsos dilemas como Saúde x Educação, Ed. Infantil x Ed. Superior, PAIC x EJA, Ciência e Tecnologia x Cultura e Lazer, Segurança Pública x Direitos Humanos. Antagonismos que desorganizam Estado e Sociedade, polarizando e barbarizando o debate público.
O governo e a mídia neoliberais movem interminável campanha de terrorismo econômico contra as propriedades e empreendimentos estatais. Uma campanha fervorosa pela privatização e liquidação do patrimônio público que ignora qualquer história e função social das instituições. Do empreendimento industrial ao serviço postal, o neoliberalismo sucateia os projetos para apregoar a ineficiência da administração pública e demonizar a política. Vender tudo vira a panacéia geral, vender tudo para o perdão dos nossos pecados desenvolvimentistas, vender tudo para exorcizar o inocente capitalismo da intervenção profana e corrupta do Estado malvado.
O vilão é sempre o servidor público, não a minoria privilegiada dos altos cargos com ordenados e penduricalhos imorais, mas a massa do funcionalismo diligente e técnico ganhando muito abaixo do merecido e necessário. O neoliberal condena toda forma de burocracia como lenta e péssima, mas salva as elites de sua crítica desonesta. Para o neoliberal, o privilegiado é antes de tudo a enfermeira e não o general, o professor e não o deputado, o assistente social e não o juiz. Constrói-se assim uma guerra de narrativas contra o servidor e seus direitos instituídos.
Incrementa o discurso falacioso sobre gasto público com uma ideia delinquente de produtividade. Defendendo a desregulamentação das relações de trabalho e o desfinanciamento da seguridade social. Ações geradoras de miséria e pauperização. Aqui, assume a posição de uma defesa quase explícita ou explícita da desigualdade social. Quer um trabalhador precarizado, informal, endividado, jogado à própria sorte e ao próprio "investimento".
O neoliberalismo mata o ideal de responsabilidade social pelo de responsabilidade fiscal e está em guerra contra a Constituição Cidadã. Propõe o fim dos mínimos sociais avançando pelo campo da desconstitucionalização, o fim do piso do investimento público em saúde e educação, quer desvincular toda e qualquer receita da união e dos estados. Ao desobrigar o poder público de cumprir o mínimo com as políticas essenciais rompe definitivamente a relação do Estado com o compromisso do Bem-Estar Social.
Os neoliberais, agentes e asseclas antigos dessa agenda da morte, compõe e atualizam a tradição necropolítica que descrevemos. Para os curiosos, Christian Lynch traça a gênese e evolução da peste no artigo "Nada de novo sob o Sol: teoria e prática do neoliberalismo brasileiro". Uma leitura excelente sobre o tema.
Na semana que o coronavírus explode nas cidades com força jamais vista, os neoliberais pautam a privatização dos Correios e da Eletrobrás, a manutenção da política extorsiva de preços internacionalizados da Petrobrás e negociam um frágil auxílio emergencial em troca do fim do gasto mínimo obrigatório com saúde e educação. Quando a prioridade deveria ser auxílio emergencial, quebra de patentes e vacinação, os inimigos do povo buscam apenas mais privilégios e menos direitos. Paulo Guedes chefia várias secretarias de "Desburocratização", "Desinvestimento", "Desestatização". Uma série de equipes ágeis em promover a destruição acelerada dos órgãos de Estado e seus empreendimentos. Na fórmula Austeridade + Desregulamentação, o que esses defensores da iniquidade produzem é o Austericídio e a Anomia, uma generalização da miséria e da barbárie. Enquanto a crise social-sanitária agudizada pelo coronavírus e as medidas de isolamento social leva a sociedade capitalista ao paroxismo, os mercadores da morte radicalizam uma defesa intransigente da ortodoxia que dá as costas e fecha os olhos para o povo.
O que se opõe às conquistas civilizatórias, o avanço dos povos pelo caminho da felicidade humana, é a falência civilizacional, a morte nacional. Os proponentes da agenda neoliberal querem desviar-se da responsabilidade pela morte nacional e falência civilizacional do Brasil-Nação, ao mesmo tempo que perseguem os nacionalistas. Para o neoliberal, o nacionalista é seu inimigo n° 1. Um carrega seu anti-PND, o Programa Nacional de Desestatização; o outro carrega o seu novo PND, o Projeto Nacional de Desenvolvimento. Um é sepultura sem lápide do país, outro é o canteiro de obras do amanhã.
Apesar de toda incoerência com as demandas populares, a agenda mórbida é DEFENDIDA pelos tais com conceitos modernos de razão e liberdade. O que poderíamos chamar de lado escuro do Iluminismo, o lado calcado na herança da escravidão moderna e das ditaduras capitalistas do séc. XX, o que os neoliberais propõem é apenas a razão instrumental e a liberdade negativa, a renúncia ao bem comum. Uma razão e liberdades sombrias, frias, e indiferentes ao sofrimento humano. Uma razão e liberdade empenhadas na concentração de renda e propriedade, na manutenção de privilégios. Não é uma razão em contrato com o povo, nem são as quatro liberdades de FDR. É a racionalização das relações de superexploração e a defesa nem sempre tão dissimulada da "liberdade de oprimir".
O debate recente entre os economistas, Monica de Bolle e Armínio Fraga, é o retrato fidedigno da contradição entre uma proposta nacional-popular e outra austericida. Afinal, Armínio Fraga é o Papa do Neoliberalismo Brasileiro. O debate em vídeo e o artigo "Obituário" de Mônica me pegaram enquanto revisava esse texto. É atualíssimo e histórico. O ex-presidente do BC mistura machismo e interdição ideológica em rompantes pobres de argumentação, é a encarnação do dogmatismo pueril que reina neste país quase falido.