- Bryan da Fonseca Araújo
A crise da Democracia nas Américas
Atualizado: 24 de jul. de 2021
A invasão ao capitólio dos EUA por apoiadores do Presidente Donald Trump exposto no texto O abalo sísmico na Democracia dos Estados Unidos, escancarou um quadro que vem sendo observado há algum tempo em outros países das Américas, que é o momento de crise a qual vivem as democracias do continente.
Havia-se a percepção de que os primeiros sinais de tal crise já poderiam ser observados com a eleição de figuras políticas que demonstravam desapreço pelas regras do jogo republicano, personalidades como Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, entre outros. Contudo, mesmo em tais circunstâncias uma aparente normalidade institucional se fazia presente e acreditava-se na continuidade ao menos superficial da democracia. A insurreição norte americana veio para destruir definitivamente essa ilusão.
Até então havia-se criado uma percepção de que crises políticas em países periféricos da América Latina seriam normais, e decorreriam da falta de estabilidade jurídico-institucional que historicamente esses Estados enfrentam. Entretanto, ao acompanharmos as cenas do último dia 6 de janeiro, onde apenas uma homem é capaz de desestabilizar a autoproclamada “maior e mais sólida democracia do mundo”, um sinal de alerta é acesso nas mentes das pessoas e realça-se a percepção da real fragilidade do nosso sistema democrático.
Contudo, a crise que hoje atinge um dos maiores países do mundo é apenas a manifestação de um processo que já vem sendo observado nas Américas, a instabilidade social e institucional que coloca o regime democrático em seu maior desafio nos tempos modernos.
Golpes ao estilo “soft”, que se dão a partir de uma deterioração lenta e gradual das instituições de controle que levam a uma destituição dos governos legitimamente eleitos sob uma aparente obediência do rito legal, se intensificaram nos últimos anos, principalmente nos países da América Latina. Recentemente, mais precisamente em 2019, acompanhamos a destituição do Presidente Evo Morales na Bolívia, que buscava, a sua maneira, perpetuar-se no poder atrás de golpes institucionais, desrespeitando o limite constitucional, no qual o chefe do Executivo nacional só poderia ocupar o cargo por 3 mandatos consecutivos (norma esta instituída pelo próprio Evo Morales, visto que a regra anterior falava apenas em eleição e reeleição), visando buscar um 4° mandato. A partir disso, alegando fraude no processo eleitoral, grupos ligados a direita oposicionista no país, por meio das Forças Armadas, exigiram a renúncia do Presidente e sua saída do país. Neste caso, sequer houve a obediência ao processo Legislativo para remoção do comandante chefe do Executivo.
Pouco noticiado por aqui, o Peru enfrentou uma forte crise política no final do ano passado, tendo trocado de Presidente quatro vezes, sendo dois deles em menos de quinze dias, devido a sucessíveis escândalos de corrupção.
No Brasil por sua vez, assistimos a um processo de impeachment cuja justificativa foi, para dizer no mínimo, discutível, onde procedeu-se a destituição de uma Presidente eleita democraticamente dois anos antes, sob a justificativa de irresponsabilidade fiscal as famosas “pedaladas fiscais”, ato praticado por todos os Presidentes até então, e que dias após a concretização do Impeachment, passaram a ser consideradas legais. Desde então nunca mais vivenciamos uma segurança jurídica e política em nosso país, estando hoje sob um governo que, seguindo o exemplo norte americano, vem constantemente desrespeitando as regras do jogo, e deixando claro que algo similar ao que foi visto nos EUA pode acontecer também por aqui.
Com tudo isso, o debate sobre os quão fortes são as instituições para a garantia do regime democrático começaram a ressurgir no debate acadêmico. Um dos trabalhos mais citados com esta temática recentemente é o livro dos professores norte-americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt “Como as democracias morrem”, onde os autores buscam analisar a crise da democracia moderna a partir de uma visão institucionalista.
Sim, falta aos autores uma visão social do problema, estando ausente do texto qualquer menção a população ou entes representativos da sociedade civil, buscando encontrar soluções institucionais para problemas institucionais, inclusive dando mais relevância aos partidos políticos (que fariam essa blindagem contra figuras autoritárias) do que ao próprio povo. Contudo, existem inúmeros méritos no trabalho dos professores Levitsky e Ziblatt, dentre eles a correta percepção do enfraquecimento, por dentro, do sistema democrático por líderes autoritários, a fim de tomar para si a legitimidade decisória.
Não podemos pensar em golpes de estado aos moldes do século XX, as rupturas democráticas se dão hoje em dia de maneira menos traumática e de forma sistêmica. Saem os tanques nas ruas, entra o aparelhamento do judiciário, troca-se o fechamento do Congresso pelo sucateamento dos órgãos de controle e cooptação dos entes investigativos. Tudo isso, visando dar um falso ar de legitimidade e legalidade a um regime que não possui qualquer apreço pelos ideais democráticos.
O grande escritor Umberto Eco, em seu artigo “Fascismo Eterno” publicado em 1995, já dizia que:
“Se ainda pensarmos nos governos totalitários que governaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial, podemos Facilmente dizer que seria difícil para eles reaparecer da mesma forma em diferentes circunstâncias históricas. Se o fascismo de Mussolini se baseava na ideia de um governante carismático, no corporativismo, na utopia do destino imperial de Roma, numa vontade imperialista de conquistar novos territórios, num nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira arregimentado de preto camisas, sobre a rejeição da democracia parlamentar, sobre o antissemitismo, então não tenho dificuldades em reconhecer que hoje a italiana Alleanza Nazionale, nascida do Partido Fascista do pós-guerra, MSI, e certamente um partido de direita, já tem muito pouco a ver com o velho fascismo (...)”.
Eco já sabia ali, que os regimes autoritários como todas as outras correntes políticas se modernizam e modificam o discurso ao longo do tempo. Buscam através de uma adaptação discursiva, alcançar uma melhor aceitação de um novo público, todavia, seus ideais permanecem sendo antidemocráticos. Devemos estar atentos para estas novas roupagens e não ficarmos procurando fantasmas no porão. Analisar o autoritarismo sob uma ótica antiquada, achando que o mesmo irá se manifestar da mesma forma que o fez no século passado, nos levará ao equívoco e à cegueira diante da serpente.
A defesa da democracia precisa se modernizar e mais ainda, entender o discurso autoritário e suas novas abordagens, só assim, conseguiremos promover uma defesa efetiva das instituições e do sistema republicano.
O sistema democrático está sob ataque, e com ele nossos direitos e garantias fundamentais, e mais uma vez somos chamados a defendê-la. A resposta deve ser dada e a linha no chão traçada ou amargaremos novamente o desespero da intolerância.
No momento, o continente americano aguarda apreensivo na esperança de uma possível retomada a uma certa normalidade institucional e democrática.
Com a realização de novas eleições na Bolívia que consagrou a vitória do partido do ex-Presidente Evo Morales, na figura do ex-Ministro da Economia Luis Arce, assim como a saída do populista Donald Trump do cargo de comandante chefe do EUA, espera-se que aos poucos possamos superar esse momento turbulento e perigoso, e que a democracia sobreviva a mais este teste.
Referência:
https://www.pegc.us/archive/Articles/eco_ur-fascism.pdf