- Diogo Teixeira
A política na terra dos imortais
Poderão política e liberdade coexistir num tempo onde tudo terá um preço?
Diogo Teixeira
Pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito.
Pós-graduado em Administração, Graduado em Direito e em Turismo

O inevitável aproximar dos dedos? (Fonte: MICHELANGELO, 1511. Detalhe do afresco “A Criação de Adão”, onde os dedos de criatura e criador quase se tocam.)
Em seu festejado livro “Homo Deus” (2016), o historiador Yuval Noah Harari comenta sobre uma questão muito cara, desde sempre, à humanidade: a vontade do eterno viver. Assunto de interesse amplo, perpassando faraós, clérigos e proletários, hoje a infinitude pode ser tratada com mais seriedade e objetividade, já que a modernidade trouxe conhecimentos científicos inimagináveis se comparados àqueles dos últimos séculos, o que, em tese (e, diz-se, em breve), possibilitaria à espécie humana uma habilidade outrora de exclusividade divina.
Não oriundas dos arbítrios de deuses ou dos caprichos de déspotas, Harari sustenta que as causas da morte nos dias atuais ocorrem como falhas técnicas, o que ensejaria, portanto, algum tipo de correção. A imortalidade (ou ao menos a sua forma mais realista para o futuro, i.e., a amortalidade[i]) estaria se aproximando bastante da realidade. Com a engenharia genética assumindo o papel das igrejas e os nanorrobôs bailando na corrente sanguínea em substituição às romarias, as mesas de cirurgia e as clínicas de estética se transformariam nos novos centros de devoção. Milhares de fiéis marchando rumo à vida eterna graças às mãos milagrosas de cirurgiões e às palavras santas de dirigentes de startups. Empreendedores, muitos deles jovens, ambiciosos e destinados a achar a cura do infortúnio técnico que se tornou a morte estariam dispostos a gastar (e a receber, obviamente) fortunas a fim de, finalmente, recompensar o sapiens com a vida eterna. Além da gigante Goggle, Harari menciona o habilidoso capitalista de risco Peter Thiel como um dos entusiastas do projeto ‘vida eterna’. Thiel, mais conhecido por fundar a empresa PayPal, já teria mencionado o seu desejo de ‘viver para sempre’[ii], e esta frase em nada diz respeito aos contos de fadas e às estórias de princesas onde ela costuma ocorrer. O para sempre, aqui, é para sempre de fato.
O filósofo Aristóteles, em seu magnífico tratado “Política” (2017), argumentou que a guerra se movia com um intuito: a paz[iii]. Pode soar contraditório, mas a ideia que Aristóteles tinha sobre a guerra naquela época era bastante distinta da atual aparentemente. Ele a imaginava como uma forma de ponderar os ânimos animalescos dos homens, guiando-os ao caminho da virtude. É possível associar, portanto, a morte ao alcance da vida boa, diretamente ligada à noção de felicidade. Ao contrário do que possa transparecer, o filósofo macedônio não era um mero entusiasta da arte da guerra. Para ele, o conflito constante levava à temperança, virtude basilar e necessária a qualquer cidade. É a noção de morte à espreita, e não a de vida para todo o sempre, a responsável pelo controle de instintos e impulsos.
É razoável pensarmos que Thiel acharia ultrajante o ideal aristotélico de temperança, baseado no conceito de “morte como termômetro da vida”. Se a política para Aristóteles era a vocação natural do homem, talvez para Thiel e outros que, porventura, pensem como ele, ela seja apenas um empecilho. A vida eterna, sem dúvida, pode trazer muitos benefícios. Quem poderia parar o todo-poderoso Thiel, cuja fortuna é estimada em USD 4,8 bilhões[iv], quando ele, para todo o sempre, resolvesse comprar e assumir o controle de canais de mídia que o criticassem?[v] Qual deus seria capaz de excomungar o imortal visionário quando ele finalmente tivesse os poderes para restabelecer os saudosos anos de 1920, os quais ainda não se concedia, ao menos nos EUA, o direito de voto às mulheres?[vi] Em suas próprias palavras, o autoproclamado libertário argui que “desde 1920, o grande aumento de beneficiários da previdência social e a extensão de franquias às mulheres — dois constituintes que são notoriamente difíceis para os libertários — transformaram a noção de ‘democracia capitalista’ em um oximoro”[vii]. Aparentemente, o conceito de liberdade de Thiel não comporta o direito ao sufrágio feminino, tampouco a ideia de imprensa livre. Contraditoriamente, o libertário parece ter um problema fundamental com a liberdade, fato que inevitavelmente se remete à sua (maneira de fazer) política.
Mesmo que as suposições de Harari se mostrarem factíveis em um futuro próximo e, de fato, torne-se possível que as empresas de biociência transformem os sapiens (certamente mais aqueles como Thiel, menos aqueles como você e eu) em deuses, um questionamento permanece: seria a política possível na terra dos imortais?
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2017.
HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
[1] Pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito. Pós-graduado em Administração. Graduado em Direito e em Turismo. @diogoteixeira87.
[i] O neologismo “amortalidade” diz respeito à possibilidade de se viver por período indeterminado, se considerados fatores biofisiológicos, desde que não se sofra um traumatismo capaz de causar a morte. [ii] HARARI, 2016, p. 34. [iii] ARISTÓTELES, 2017, p. 268. [iv] FORBES. Peter Thiel Real time Net Worth. Disponível em: <https://www.forbes.com/profile/peter-thiel/?sh=bd01c9d533a3>. Acesso em 25 abr.2021. [v] SOPRANA, Paula. Como Peter Thiel destruiu o Gawker. Época, 2016. Disponível em: <https://epoca.globo.com/vida/experiencias-digitais/noticia/2016/08/como-peter-thiel-destruiu-o-gawker.html>. Acesso em 25 abr. 2021. [vi] Peter Thiel, o controverso. Exame, 2017. Disponível em: <https://exame.com/tecnologia/peter-thiel-o-controverso/>. Acesso em: 25 abr. 2021. [vii] THIEL, Peter. The Education of a Libertarian. Cato Unbound, 2009. Disponível em: <https://www.cato-unbound.org/2009/04/13/peter-thiel/education-libertarian>. Acesso em 25 abr. 2021.