- Christian Velloso Kuhn
Cartas dos economistas: dissenso e pluralismo
Atualizado: 15 de abr. de 2021
Por Christian Velloso Kuhn
Economista e professor do Instituto PROFECOM
Na semana passada, foi divulgada uma carta assinada inicialmente por 509 economistas, banqueiros e outros com o intuito de apontar críticas e oferecer sugestões para a gestão sanitária do combate à pandemia do COVID-19[i]. A despeito da formação dos profissionais signatários do documento intitulado “O País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo - Carta Aberta à Sociedade Referente a Medidas de Combate à Pandemia”, seu teor se concentra basicamente nas medidas da área da saúde, não obstante mencione alguns dados econômicos, como a simulação da queda de -6,9% na arrecadação tributária do governo federal (cerca de R$ 58 bilhões), atribuída aos erros cometidos na gestão do combate à pandemia, ou ainda que o atraso na vacinação poderá resultar em uma redução de R$ 131,4 bilhões no PIB em 2021.
Um mérito do documento é justamente vencer a falsa dicotomia entre Economia versus Saúde propalada pelo governo Bolsonaro. Como um dos autores da carta explica: “A economia não vai se recuperar enquanto não resolvermos o problema da saúde. Quanto mais se atrasa a saúde, mais vai atrasar a recuperação da economia”[ii] Também é questionada a parca disponibilidade de recursos federais para compra de vacinas (R$ 22 bilhões), meros 4,2% dos R$ 528,3 bilhões gastos até o momento com ações de combate à pandemia, demonstrando falta de prioridade para a vacinação, enquanto desperdiçou quase R$ 90 milhões com a aquisição de medicamentos sem eficácia comprovada[iii]. Não é à toa que os autores do documento criticaram a (falta de) liderança coordenada nacionalmente por Bolsonaro na gestão de combate ao COVID-19, quando argumentam que “o desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração, e o flerte com o movimento antivacina caracterizou a liderança política maior no país”.
Mais tarde, a carta chegou a receber mais 1.000 assinaturas de economistas de outros matizes ideológicos (dentre as quais do economista que vos fala[iv]), conferindo maior pluralidade na adesão ao documento. Adicionalmente, ganhou repercussão além da esperada, inclusive se tornando tema de reunião no Congresso[v].
Porém, em que pese o tom ponderado e o consenso de medidas tão elementares para o combate à pandemia do texto, houve quem criticasse o atraso nas sugestões propostas, bem como a ausência de outras ações no campo econômico. Na coluna de Cristina Serra na Folha de São Paulo[vi], é apontada a leniência e intempestividade da reação do grupo signatário inicialmente da carta, mas também a tolerância pela simpatia com a agenda liberal capitaneada por Guedes com suas reformas e outras medidas elitistas. A autora ainda questiona a falta de medidas como criação de impostos sobre grandes fortunas. Na mesma linha, o professor economista Nelson Marconi, da FGV-SP, critica inclusive o sectarismo do grupo, que não buscou contribuições de economistas de pensamento econômico diverso[vii]. Também critica a cumplicidade dos signatários do documento com o Teto dos Gastos, apontando como problema de gestão, quando “é o desmonte do Estado e a abertura desenfreada às importações que eles mesmos apoiam que está contribuindo para não termos vacina”[viii] Outro texto com severas ressalvas à carta é de autoria de Maria Regina Paiva Duarte, no Sul21[ix]. Além de destacar a demora na manifestação do grupo, indica a insuficiência de críticas e proposições. Maria Regina também menciona o Teto dos Gastos como um mecanismo que dificulta as ações do Estado no combate à pandemia, assim como os cortes de gastos na educação e saúde e a política de austeridade fiscal, com a concordância de muitos que assinaram a carta. A proposta de abertura de escolas também é apontada como um erro na visão da autora, pois nas escolas públicas faltam recursos e materiais para higienização para disponibilizar aulas presenciais. Finalmente, cita a campanha “Tributar os Super-Ricos”, que poderia obter valorosos recursos para serem utilizados no combate à pandemia.
Todas as críticas acima são procedentes. Por esse motivo, outro grupo de economistas lançou um documento intitulado “Manifesto do Andar de Baixo: Essenciais são as Vidas” (o qual também recebeu o meu apoio)[x]. Além de também apontar a responsabilidade do presidente e de seu governo pelo estado de calamidade que se instaurou no país, com falhas gravíssimas e maus resultados tanto na área da saúde como na economia, o manifesto critica a austeridade fiscal e o Teto dos Gastos, bem como cobra medidas de política industrial no complexo da saúde e ações para maior oferta de alimentos de modo a coibir o aumento dos preços desses produtos. Finalmente, o documento indica várias proposições anteriores à carta dos economistas para enfrentar a crise, como aumento dos gastos públicos, combate ao desemprego, crédito a micro e pequenas empresas, uso do BNDES, criação e mudanças em tributos (IR, Grandes Fortunas, Lucros e Dividendos, CSLL, ITCMD, etc.), dentre outras medidas.
Se a carta dos economistas propunha medidas de fácil consenso na área da saúde, o Manifesto do Andar de Baixo demonstra as inconsistências da política econômica que vem sendo empregada pelo menos desde o governo Temer, que dificulta inclusive a retomada econômica e, concomitantemente, o combate à pandemia. Resta a seguinte questão: é possível conciliar os interesses de ambos os grupos?
A resposta é sim e não. Há (quase) consenso no que precisa ser feito na área da saúde, entretanto, naturalmente, as divergências se concentram no como, primordialmente no que tange a política econômica.
Isso decorre da evolução do pensamento econômico, que abarca diferentes teorias e correntes, sendo comumente dividido em dois grandes grupos: ortodoxos e heterodoxos. O primeiro é formado, sobretudo, pelos economistas da corrente neoclássica, que são identificados com ideias como livre mercado e ausência (ou contenção) de intervenção do Estado na economia; já o segundo, é composto por economistas que são mais críticos ao funcionamento do mercado e do sistema capitalista (marxistas e institucionalistas), e geralmente defendem uma atuação mais ativa do Estado na economia (keynesianos)[xi].
A maior parte dos economistas signatários da primeira carta tem maior afinidade com os ortodoxos, enquanto os profissionais que assinaram o manifesto são mais bem identificados com a heterodoxia. Por essa razão, é inerente que haja controvérsias entre ambos os grupos.
Alguém pode se perguntar: mas você, por que assinou os dois documentos? Eu respondo. Assinei o primeiro, ainda sem a existência do segundo, porque a despeito da intempestividade da carta, concordava com as suas proposições e não tenho problemas em reconhecer aquiescências em temas pontuais. Todavia, como me identifico mais com o pensamento heterodoxo, o segundo documento, que surgiu em decorrência da insuficiência do primeiro, refletiu de modo mais íntegro ao que defendo para a economia do Brasil.
Ademais, também reconheço o caráter plural da Ciência Econômica, que inclusive foi objeto da metodologia que empreguei em minha tese de doutorado[xii]. Nesse trabalho, menciono Paul Feyerabend, um autor pouco abordado pelos estudiosos da metodologia da ciência econômica. Feyerabend defende que não existe “O Método” único e verdadeiro, permitindo a convivência de diversas interpretações e teorias. Esse filósofo da ciência, inclusive, defendia um princípio chamado de “vale tudo”, no sentido de que tudo é possível e pode ser considerado, nada deve ser rechaçado a priori. Decorre da aplicação de outra concepção chamada incomensurabilidade de teorias, também compartilhado por Thomas Kuhn. As teorias seriam incomensuráveis porque não seriam gerais o suficiente, sendo muito específicas e apresentando limitações metodológicas que as fazem serem parte do todo. Portanto, não haveria espaço para um monismo teórico em nenhuma ciência, quiçá na Economia.
Por conseguinte, as correntes de economistas que representam ambos os grupos supracitados possuem teorias incomensuráveis, e o debate entre elas é que tem contribuído significativamente para a evolução do pensamento econômico. Desse modo, a meu ver, é possível anuir algumas proposições da carta dos economistas, por serem em sua maioria de senso comum (o que demonstra o quão equivocado está o Governo Bolsonaro), mas dificilmente os signatários desse documento concordariam com as críticas e proposições contidas no segundo manifesto. É melhor aceitar a pluralidade de ideologias e pensamento econômico, buscando consenso onde é possível e debater civilizadamente sobre aquilo que divergirmos. Eu, particularmente, apoio as medidas sanitárias propostas pela primeira carta, mas apregoo que sejam adotadas as ações econômicas sugeridas no segundo manifesto. Talvez, para estas, seja necessário aguardar os resultados das eleições presidenciais de 2022, a não ser que alguém acredite que Bolsonaro demitirá Guedes e dará um “cavalo de pau” na orientação da política econômica de seu governo. Faria um bem ao país, mas menos do que a renúncia ou impeachment de um presidente que se mostra, a cada dia, inepto e ilegítimo para continuar no cargo.
Notas
[i] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/22/economistas-cobram-acao-contra-covid.ghtml [ii] Idem acima. [iii] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55747043. [iv] Nessa matéria, consta o meu nome: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/03/21/carta-assinada-ja-por-222-economistas-critica-combate-a-pandemia-no-pais.ghtml. [v] https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/03/22/carta-dos-economistas-fortalece-congresso-contra-bolsonaro-e-poe-em-xeque-posse-de-queiroga.ghtml. [vi] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/03/a-carta-tardia-do-pib.shtml. [vii] https://portaldisparada.com.br/economia-e-subdesenvolvimento/manifesto-de-banqueiros-vacina/?utm_source=share_buttons&utm_medium=social&utm_campaign=social_share. [viii] Idem acima. [ix] https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2021/03/a-carta-nao-chegou-a-tempo-para-300-mil-vidas-por-maria-regina-paiva-duarte/. [x] https://essenciaissaoasvidas.wordpress.com/. [xi] Essa definição é muito singela, serve apenas para ilustrar as diferenças de pensamento entre economistas, que é muito mais rica e existem outras correntes além das supramencionadas. [xii] https://lume.ufrgs.br/handle/10183/79109.