- Christian Velloso Kuhn
Estado de crise: um projeto neoliberal brasileiro
Atualizado: 15 de abr. de 2021
Por Christian Velloso Kuhn
Economista e professor do Instituto PROFECOM
Conforme já exposto em artigo anterior de minha autoria aqui no We Coletivo[i], desde o primeiro trimestre de 2014, quando o PIB brasileiro atingiu o seu maior nível, até o final de 2016, tivemos uma recessão de -8,03% naquele período. Desde então, a trajetória de crescimento econômico registrou uma média anual de 1,26% no triênio seguinte (2017-2019), um aumento acumulado de meros 3,82% em três anos, e a última previsão de queda do PIB para o ano passado é de -4,36%, segundo o Banco Central[ii]. Confirmada essa estimativa, o patamar alcançado pelo PIB em 2020 se encontrará abaixo do nível de 2011, culminando em uma extensa e longa estagnação econômica por toda a última década.
A despeito desse desempenho pífio, desde 2015 com Levy no Ministério da Fazenda, com um breve interregno entre a sua substituição por Nelson Barbosa em dezembro daquele ano e o impeachment da presidente Dilma em maio de 2016, a orientação da política econômica adotada pelo governo federal vem sendo mais ortodoxa, priorizando medidas atreladas à austeridade fiscal, e desde a assunção de Temer ao poder, privatizações e reformas estruturais de cunho neoliberal. Não houve nenhuma mudança significativa nessa direção, e os resultados vêm sendo cada vez mais catastróficos.
Logo, se não há nenhum compromisso convincente por parte do governo federal em recuperar a atividade econômica, resta saber a quem interessa a economia brasileira se manter em um “estado de crise” por tão longo tempo. Bauman e Bordoni (2016)[iii], ao descreverem esse estado global instaurado desde a crise de 2008, parecem também retratar o que vem sendo a nossa realidade enfrentada desde 2015:
“Quando uma crise acaba, outra, que nesse ínterim chegou roendo nossos calcanhares, entra em cena e toma o seu lugar. Ou talvez se trate da mesma imensa crise que alimenta a si mesma e muda com o tempo, transformando e regenerando a si própria como uma entidade teratogênica monstruosa. Ela devora e muda o destino de milhões de pessoas, fazendo disso uma regra, e não uma exceção, tornando-se um hábito cotidiano com o qual temos de lidar, em vez de uma inconveniência inoportuna ocasional da qual nos vemos livre o mais rápido possível. (...) Nós temos de nos habituar a conviver com a crise. Pois a crise está aqui para ficar.” (BAUMAN, BANDONI, 2016, p. 15).
Um autor importante para compreender a motivação por trás das crises econômicas é Michal Kalecki (1943), em seu seminal artigo “Aspectos Políticos do Pleno Emprego”[iv]. Nele, o autor polonês expõe três razões pelos quais a classe empresarial se opõe ao uso dos gastos governamentais para atingir o pleno emprego: i) interferência do governo; ii) orientação desses gastos em investimentos públicos e subsídios; iii) “mudanças sociais e políticas decorrentes da manutenção do pleno emprego”. A primeira ocorre porque o uso dos gastos governamentais comprometeria o estado de confiança, fundamental para nortear os investimentos privados. A segunda em função do investimento público, de alguma maneira, acabar por concorrer com a iniciativa privada em algum novo segmento produtivo, enquanto os subsídios ao consumo de massa ferirem um princípio moral que serve de fundamento à ética capitalista de “ganhar o pão com o suor” de seu trabalho. Finalmente, o terceiro é decorrente da perda da função disciplinar que exercem as demissões sobre os trabalhadores. Nas palavras do autor, “’disciplina nas fábricas’ e ‘estabilidade política’ são mais apreciadas do que os lucros pelos líderes empresariais. Seu instinto de classe diz-lhes que o pleno emprego duradouro não é saudável do seu ponto de vista, e que o desemprego é parte integrante do sistema capitalista ‘normal’”.
No (o)caso brasileiro, instalada a recessão de 2014-2016, a forte retração da atividade econômica acabou por provocar um círculo vicioso, em que o menor nível de produção e emprego implica a queda da arrecadação fiscal, que sem uma contrapartida do mesmo monte nos gastos governamentais, recrudesce o déficit fiscal e eleva a dívida pública. A sustentação de altos níveis de desemprego favorece a contenção de aumentos salariais e enfraquece o poder de barganha dos trabalhadores. Para agravar ainda mais esse quadro, o governo Temer adotou duas medidas que explicam a forte obstáculo para sairmos desse estado de crise: o Teto dos Gastos Públicos, freando esse instrumento como mecanismo anticíclico para estimular a demanda agregada em tempos de recessão, ajustando nos períodos de prosperidade – além de atender aos interesses do empresariado de retrair o uso dos gastos governamentais para conduzir a economia ao pleno emprego, como bem expunha Kalecki (1943) - e a Reforma Trabalhista, retirando direitos dos trabalhadores e o poder dos sindicatos para defender os interesses dessa classe, o que resultou em manutenção da alta taxa de desemprego mesmo com o retorno do crescimento do PIB a partir de 2017.
Já o governo Bolsonaro, com o economista Paulo Guedes exercendo o papel de avalista do comprometimento à agenda neoliberal com os interesses do mercado, até o momento, aprovou a Reforma da Previdência, que no médio e longo prazo, deverá reduzir drasticamente os níveis de aposentadoria dos mais pobres, o Marco do Saneamento Básico, que tende a facilitar a privatização e maior participação da iniciativa privada no setor, e recentemente, vem tentando emplacar as privatizações dos Correios e Eletrobras, sem falar na Reforma Administrativa que ficou para ser votada nesse ano.
Observa-se que nenhuma das ações elencadas, de ambos os governos, exerce um papel de incentivo ao crescimento e desenvolvimento econômico, pelo contrário, parecem aprofundar ainda mais a crise. É como se o governo mantivesse a economia em um coma induzido, para se desfazer de todo o patrimônio e poder do Estado enquanto não reúne condições de sair de um estado vegetativo.
Não é a toa que o governo Bolsonaro venha se mostrando contrário à continuidade do Auxílio Emergencial e outras medidas para apoiar os governos estaduais e municipais e os micro e pequenos empresários no combate à pandemia da COVID-19. Com essas medidas, reduzir-se-ia o contingente de desempregados e a necessidade de manter o comércio aberto. Ocorre que para tanto, requereria o uso dos gastos governamentais, indo na contramão da “ética empresarial” bem exposta por Kalecki (1943).
Esse constante estado de crise é o pano de fundo perfeito para os governos comprometidos com a pauta neoliberal empurrarem o seu projeto que visa a redução do tamanho do Estado, a alienação de estatais para grandes grupos privados ganharem ativos e ingressarem em novos segmentos e a implantação de reformas que reduzem os direitos trabalhistas e dos mais pobres, em detrimento de favorecer os interesses de rentistas e outros membros da elite brasileira.
Convém recordar que não é a primeira vez que o Brasil passa por situação semelhante. Pelo menos nos governos Collor e FHC, em que se defendeu a redução do Estado e se iniciaram as privatizações de estatais. Por conseguinte, parafraseando e adaptando uma célebre frase do grande antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, o estado de crise não é uma crise, é um projeto neoliberal. Os governos Temer e Bolsonaro querem apenas dar continuidade a esse projeto iniciado no início dos anos 1990. Somente com a articulação e fortalecimento do campo progressista em torno de um projeto desenvolvimentista será possível barrar o avanço do projeto neoliberal no Brasil.
[i] https://www.wecoletivo.com/post/incompet%C3%AAncia-%C3%BAtil-o-paradoxo-de-guedes. [ii] Boletim Focus do Banco Central de 31/12/2020: Disponível em: https://bit.ly/39GoxFy. [iii] BAUMAN, Zygmunt, BORDONI, Carlo. Estado de Crise. Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2016, 192 pp. [iv] https://vermelho.org.br/2018/05/20/aspectos-politicos-do-pleno-emprego/#:~:text=Toca%20na%20contradi%C3%A7%C3%A3o%20pol%C3%ADtica%20mais,pleno%20emprego%E2%80%9D%20(1943).