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  • Christian Velloso Kuhn

MENOS OLAVO, MAIS FREIRE: OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE BOLSONARISMO

Christian Velloso Kuhn

Economista e professor do Instituto PROFECOM

Nesse último 15 de outubro, tivemos a oportunidade de comemorar o Dia dos Professores, porém, em circunstâncias bastante adversas. Não que a adversidade seja algo estranho ao cotidiano dos profissionais da área de educação. A diferença é que atingiu o maior nível de intensidade dos últimos anos. Ordinariamente, as atividades de ensino exigem dos professores não apenas domínio do conteúdo ou de didática, como também a disponibilização de recursos materiais e de infraestrutura. Todavia, com o advento da pandemia do Coronavírus, diversos docentes precisaram demonstrar enorme capacidade de adaptação, criatividade e improvisação.

Isso porque as atividades, ora realizadas em salas de aula, necessitaram ser ajustadas para as residências de professores e alunos, conectando através de computadores e celulares.

Infelizmente, se antes da pandemia, era excessivamente alta a discrepância de recursos e infraestrutura oferecidos pelas escolas, com a exigência do cumprimento dos protocolos de distanciamento social, esse quadro se acirrou profundamente. Em que pese a popularização dos recursos de informática e de telecomunicações nas últimas décadas, mesmo entre a população de menores faixas de renda, a situação da grande maioria dos estudantes é um acesso bastante limitado e até inexistente. Se em alguns casos, o ensino remoto já era uma realidade para alunos das modalidades de Ensino à Distância (EAD) ou semipresencial, para outros tantos estudantes, a única forma possível se dá nas dependências dos estabelecimentos de ensino.

Como se já não bastassem todos os obstáculos supracitados, o cenário político brasileiro desde a eleição de Bolsonaro no final de 2018 se mostrou completamente desfavorável à educação (infortunadamente, não restrito somente a essa área), agravando dramaticamente as dificuldades enfrentadas por alunos, professores e demais profissionais do ensino durante a pandemia. A precarização da gestão da educação pelo governo federal iniciou com a má escolha de ministros e membros do segundo escalão com parca experiência e limitado conhecimento. Comprometeu a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), o orçamento das universidades federais e a realização de pesquisas por institutos nacionais, inclusive relevantes para a saúde pública, como na elaboração de testes e vacinas para o combate ao Coronavírus.

O negacionismo se tornou uma diretriz chave do governo federal na condução de seus discursos e práticas na educação, contaminada pelo olavismo. A promoção do homeschooling é um de tantos exemplos. Ainda que em certos casos e sob certas condições, possa ser uma alternativa, o governo Bolsonaro apresentou essa forma de educar, que deveria ser restrita a situações excepcionais, como uma das principais políticas para a área, seguindo uma diretriz de demonização do professor, como se combatessem doutrinadores. Essa é uma das justificativas utilizadas para defender o projeto Escola Sem Partido, um conjunto de medidas desconexas e desvairadas, conferindo sentido a um linguajar compatível ao duplipensar criado por George Orwell no seu livro 1984.

A falaciosa acusação de doutrinação por parte dos professores serve para uma oculta intenção maquiavélica. A atividade de incentivo à reflexão e ao debate desenvolve a capacidade crítica dos alunos, o que torna mais difícil justamente a doutrinação e tutela dos indivíduos a se comportarem como “gado”. O que desejam líderes autoritários e medíocres feito Bolsonaro é a formação de uma massa ignara e fiel cegamente, e composta igualmente por anódinos incultos e de caráter duvidoso. Aqueles que ainda persistem no apoio incondicional ao presidente, demonstram seu perfeito encaixe nesse perfil.

Por esse motivo que Paulo Freire sobre uma implacável perseguição. Seus livros e citações induzem à reflexão crítica, obstando ao propósito de idiotização de parte da população. Proferir que a educação transforme a sociedade, seja libertadora, crie possibilidades para a construção do conhecimento ou que é um ato de amor e coragem, dificulta a manipulação dos cidadãos. Além disso, conferir ao educador o poder de se eternizar “em cada ser que educa”, provavelmente, imponha ainda mais obstáculos aos defensores de projetos como Escola Sem Partido. Não é somente aos olavistas negacionistas que Paulo Freire causa furor. Suas críticas ao capitalismo e a influência de Marx em sua obra também geram descontentamento aos neoliberais. Estes acabam tendo seus interesses recônditos indiretamente atendidos pelos destemperados extremistas conservadores da direita.

É o que expõe também o professor Pedro Henrique Máximo em seu artigo no We Coletivo, em que o mercado transforma o ensino em mercadoria, obrigando necessariamente a gerar lucro aos acionistas das instituições de ensino privado, enquanto a qualidade nem sempre acompanha esse requisito. Recursos são restringidos, como parcas ou inexistentes bibliotecas. Também os próprios professores, como bem destaca Máximo, são por muitas vezes constrangidos e ameaçados, sofrendo tentativas de silenciamento por meio de métodos coagentes e violentos.

É claro que também compete a nós, professores, acompanharmos algumas das transformações da sociedade com menos resistência preconceituosa, buscando a devida adaptação às condições impostas pelas inovações tecnológicas, dentro de contextos adversos como o ocasionado pela atual pandemia. É o caso do ensino remoto, que como bem ressalta o professor Gregorio Grisa, especialista em educação, em entrevista para a Folha de São Paulo, exige dos docentes uma reflexão autocrítica do nosso comportamento reativo e posicionamento intransigente a essa mudança.

Abrindo-se mais ao diálogo, é possível que professores com visões mais progressistas, inclusive na acepção mais ampla do termoiii, precisem olhar criticamente mais para si mesmos, podendo compreender como evoluíram movimentos como do Escola Sem Partido ou ONGs empresariais que vêm atuando em contraponto à academia, tomando-lhe espaço no debate junto à opinião pública. Ainda que exceções, existem excessos e omissões por parte de gestores do ensino público, até falta de gestão. Recursos financeiros e materiais mal alocados, projetos de pesquisa sem retorno ou com pouca utilidade para a sociedade, alunos com liberdade excessiva e falta de comprometimento com uma postura mais compatível com a de um acadêmico interessado na aprendizagem e seu próprio desenvolvimento, são algumas raras situações incondizentes que foram subestimadas ingenuamente pelos progressistas e potencializadas por conservadores, anarcocapitalistas e outros extremistas da direita para justificarem suas proposições descabidas e infundadas como vouchers e outras excentricidades mercadológicas.

O professor Gregorio também tem razão quando enfatiza o papel da escola como “cinturão de proteção social” que requer se manter em atividade. Por esse motivo, a resistência em empregar o ensino remoto dificultou não só o planejamento das atividades escolares, como também desestabilizou a rotina e aprendizagem dos alunos. Importante ressaltar que, ao apontar tais críticas, não se quer aqui qualquer “culpabilização” dos seus colegas, até porque muitos precisaram se “reinventar” ao mesmo tempo que “viram seus trabalhos se precarizarem”.

Não obstante as ressalvas supramencionadas, a realidade da grande maioria dos professores brasileiros é de baixa valorização e condições insuficientes de trabalho. Os professores de educação básica ganharam 78% da remuneração dos profissionais de igual titulação em 2020, ante 60% em 2012iv. Num estudo da OCDE envolvendo 40 países, os professores brasileiros no inicio da carreira são os que ganham menos (US$ 13,9 mil por ano), contra US$ 65 mil dos docentes alemães, US$ 43,1 mil dos espanhóis, US$ 41,2 mil dos sul-coreanos e US$ 28,8 mil dos turcosv. Além disso, um estudo da Varkey Foundation aplicado em 35 países aponta que onde os professores possuem menor prestígio junto à sociedade é no Brasilvi. Por esse motivo, como bem conclui o professor Gregorio Grisa em seu último artigo: “Bons salários e planos de carreira, estratégias inovadoras de seleção e fomento para que jovens de destaque façam licenciaturas e priorização orçamentária de longo prazo da educação e da ciência e tecnologia devem ser ações inequívocas para o planejamento das políticas públicas dos próximos anos”.

À guisa de conclusão, sem sombra de dúvidas, qualquer política pública séria na área da educação deveria ser alicerçada sob as diretrizes acima. Todavia, lamentavelmente, não será sob a atual (falta de) gestão do desgoverno Bolsonaro que se vislumbrará qualquer ação nesse formato. Não é a toa que, hoje em dia, o dia do professor é uma data que requer menos celebração e mais proteção. Por isso, precisaremos de forte resiliência do nosso corpo docente e, sobretudo, a eleição de governantes preparados, com projeto autoral para o país e com indispensável espírito republicano para consertar o rumo da educação brasileira e dar as devidas condições para que voltemos a trilhar o caminho do desenvolvimento socioeconômico. No campo ideológico, ao contrário do que apregoam os membros do MBL, se necessitamos de mais Marx do que Mises, na educação, é crucial mais Freire e absolutamente nada de Olavo. Finalmente, para combatermos a denúncia feita por Darcy Ribeiro no passado (e mais atual do que nunca), precisamos transformar o projeto da crise na educação ora em curso em um genuíno projeto de solução da educação.

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