- João Pedro Boechat
O capitalismo de vigilância é a nova fronteira na luta pela soberania Nacional
João Pedro Boechat Florencio
PDT/Niterói
No mundo jurídico, as inovações trazidas pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais vêm recebendo muita atenção, mas os perigos trazidos pela ascensão da indústria de dados no século XXI não tiveram o mesmo cuidado por parte da classe política nem da mídia brasileira. Vejo isso com extrema preocupação, pois além de ser essencial para a compreensão da disputa política contemporânea, essa é uma questão de soberania nacional.
Essa lei foi inspirada no ordenamento jurídico europeu, onde as preocupações com a indústria de dados são mais desenvolvidas. Nesse ano, foi lançado no Brasil o livro da Shoshana Zuboff ‘A Era do Capitalismo de Vigilância: A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder’, um trabalho essencial e minunciosamente fundamentado e detalhado sobre as inovações dessa indústria desde 2001, que merece a atenção de todos que se propoem a entender, estudar e trabalhar a política nos próximos anos. A importância desse livro seminal, que chegou a ser comparado com ‘O Capital’ de Karl Marx por seu potencial instigante, inovador e crítico dos desenvolvimentos contemporâneos do capitalismo não pode ser subestimada.
Em seu livro, Zuboff explica o desenvolvimento do que chama de “capitalismo de vigilância”, um novo sistema econômico que comodifica e explora os dados pessoais de bilhões de pessoas com o objetivo central de auferir lucro. Segundo ela, a Google foi a empresa pioneira nessa indústria, e a Facebook foi sua principal sucessora. Hoje, a Apple é a única Big Tech que não entrou nesse mercado, embora nada a impeça que o faça. Esse desenvolvimento é responsável pela ascensão de uma nova forma de poder, o poder instrumentário, através da capacidade que esses agentes e governos associados têm de influenciar comportamentos humanos em uma escala jamais vista na história.
Penso que, além de representar um perigo pro povo brasileiro, sobretudo para as classes oprimidas, o poder instrumentário tem um potencial assustador quando consideramos que seus detentores são empresas e agências de inteligência de superpotências mundiais. Não é à toa que os Estados Unidos travam uma batalha global pelo mercado do 5G: o acesso à rota dos dados na internet é essencial para o controle desse poder. Explico.
Zuboff ensina que o Capitalismo de Vigilância nasceu no Vale do Silício, na California, em 2001. A Google, que surgiu como um site de buscas na internet, aprendeu a informatizar os dados comportamentais que ela recebia de seus usuários (cliques, buscas, etc.) e utilizá-los para aperfeiçoar seus algoritmos através do aprendizado de máquina. Essa fase de desenvolvimento tecnológico foi chamada por Zuboff de ciclo de reinvestimento do valor comportamental, gerando “custo-zero” aos usuários, já que as informações eram reinvestidas diretamente em sua experiência. De qualquer forma, a privacidade das pessoas já era invadida, sem que elas pudessem ter o controle do que seria feito com essas informações.
Após o estouro da bolha especulativa das ponto com, perdeu-se o fácil acesso ao crédito e ao capital de risco, e empresas como a Google precisaram buscar urgentemente, pela própria sobrevivência, formas de monetizar seus serviços. Assim, a Google aceitou passar a vender anúncios em seus serviços, e aprendeu a tratar dados informatizados para prever, através de processos de aprendizado de máquina (machine learning), quais anúncios tinham o maior potencial de sucesso entre os usuários. Ao longo dos anos, esse desenvolvimento se tornou cada vez mais eficiente, e a empresa se expandiu por vários setores de tecnologia, aumentando a coleta de dados de forma exponencial, diversificando também a forma como passou a empregar essa nova tecnologia. Um estudo confirma que, hoje, até buscas em sites pornográficos são monitoradas por trackers da Google e da Facebook.
Esses dados que são usados para a exploração econômica dessas empresas são chamados por Zuboff de superávit comportamental: dados pessoais de bilhões de pessoas que transformados em commodities e explorados pela indústria de dados sem nenhuma transparência. Assim, eles puderam escapar da fiscalização e do escrutínio público, em um mercado altamente tecnológico e notoriamente desregulado. As empresas que praticam o capitalismo de vigilância vendem predições de comportamentos, no que Zuboff chama de mercado de comportamentos futuros. A competição entre essas empresas se dá através da capacidade que cada uma tem de dar maior certeza ao comprador do que o usuário da plataforma vai fazer, além de sua capacidade de atrair e manter o usuário engajado em sua plataforma ou em seus serviços secundários. Os usuários dos serviços dessas empresas não são exatamente o produto desse mercado: eles são as fontes de suprimento da matéria-prima (o superávit comportamental) que alimenta o novo meio de produção (a inteligência de máquina que realiza o tratamento dos dados), gerando predições do comportamento do usuário. Esses produtos de predição são vendidos no mercado de comportamentos futuros para as empresas clientes, gerando lucros e retroalimentando o sistema.
É imperativo citar algumas estatísticas. Em 2015, os pesquisadores do Web Privacy Consenseus constataram que, caso uma pessoa visitasse os 100 principais sites da internet, ela acumularia mais de 6.000 cookies em seu computador, dos quais 83% eram de terceiros sem relação com o site visitado. A Google “rastreava infraestrutura” em 92 dos cem sites principais e 923 dos mil sites principais; em outra análise, de Timothy Liberty, da Universidade da Pennsylvannia, constatou “que 90% deles vazam dados para uma média de nove domínios externos que rastreiam, capturam e expropriam dados do usuário para propósitos comerciais”. Desses sites, 78% faziam transferências à propriedade da Google; 34%, para a Facebook.
A transparência se limitava a dizer se tal conteúdo é pago à empresa ou não; de qualquer modo, as redes sociais conseguem determinar, através de complexos sistemas algorítmicos, uma experiência individualizada para cada pessoa. Com as novas legislações de proteção de dados, o rol de exigências aumentou, mas ainda é insuficiente para conter o crescimento dessa nova fronteira de poder. Se não se pode afirmar com clareza o tamanho do impacto negativo que o capitalismo de vigilância tem na sociedade, é justamente pelo fato de que a indústria se desenvolveu durante quase duas décadas sem sofrer restrições ou ser obrigada à transparência. Apenas quando escândalos como o da WikiLeaks/NSA, e o do Facebook/Cambridge Analytica vieram à tona, foi que diversos setores passaram a se preocupar efetivamente com esse desenvolvimento econômico. Apenas quando o capitalismo de vigilância tornou possível a volta do fascismo ao poder que a parcela da sociedade não afundada nas fake news passou a prestar atenção no perigo existente em permitir que a ideologia de mercado neoliberal – incentivando as redes sociais a investir cada vez mais em formas de viciar o usuário em sua plataforma – criasse “câmaras de eco” de teorias conspiratórias e discursos de ódio.
A lógica de lucros acima de tudo como função social das empresas é o que torna possível a rendição de nossa privacidade às necessidades do capital. No entanto, para além da espoliação econômica da privacidade das pessoas, esses desenvolvimentos tornaram possível a ascensão de uma nova forma de poder chamada por Zuboff de poder instrumentário, que seria a capacidade de alterar comportamentos e pensamentos humanos em uma escala jamais vista anteriormente. Experiências como o Pokémon Go, que conseguiu direcionar usuários para estabelecimentos comerciais com os quais possuía convênio, são experimentos da capacidade da indústria de dados de influenciar o comportamento humano. A Facebook também foi uma das responsáveis por aprimorar essas experiências, modelando a experiência de seus usuários para ver os conteúdos que eles mais possuem o interesse ou predisposição a consumir.
Como Zuboff explica, “processos de máquina substituem relações humanas para que a certeza possa substituir a confiança, através de processos que se tornam mais valiosos à medida que se aproximam da certeza”. Ana Frazão, advogada e professora especialista em privacidade de dados, ensina como o tratamento de dados pode ser utilizado não só para prever comportamentos, como também para tomar decisões importantes que afetam a vida das pessoas de forma muito mais direta como o acesso ao crédito ou a conquista de uma vaga de emprego. O capitalismo de vigilância, portanto, nos direciona à uma sociedade de vigilância.
À medida que as empresas capitalistas de vigilância saem da tela do seu computador e entram com seu smartphone no seu bolso, rastreando seus passos; entram nos seus eletrodomésticos, eletroeletrônicos, carros autodirigíveis e smart homes, tendo acesso a informações do seu cotidiano que você mesmo não conhece, e consegue processá-las com tecnologias cada vez mais desenvolvidas sem nenhuma transparência, uma coisa é certa: o impacto do poder instrumentário em nossa sociedade se tornará exponencialmente maior com o passar dos anos. Como sintetiza Zuboff, “novas rotas de suprimento estão em contínua construção e teste, e apenas algumas se tornam operacionais”. É realmente assustador como essas preocupações, que foram tão influentes no passado, deixaram de preocupar as pessoas quando efetivamente se tornaram realidade.
Se nós não confiamos no Estado para ter esse tipo de informações e poder, como podemos confiar em empresas privadas que formam oligopólios na internet? Mesmo se pudéssemos confiar no interesse dessas empresas e do governo americano de preservar seus usuários americanos, não podemos dar essa mesma garantia pela defesa dos usuários brasileiros. Na verdade, o desenvolvimento do capitalismo vigilância nem teria sido possível sem a anuência das agências de inteligência norteamericanas que também exploravam e ainda exploram essas informações, muitas vezes em parcerias com as próprias empresas, e muitas vezes para espionar outros países. A Google esteve presente em ao menos uma reunião por semana na Casa Branca entre 2008 e 2015. Mais de 250 pessoas transitaram entre a administração de Obama e a Google. Hoje é público e notório que Dilma Roussef e a Petrobrás foram espionadas pela NSA, além de todo o histórico de décadas de espionagens e intervenções políticas de grandes potências no Brasil.
Quando na história o Estado de Direito se impôs às necessidades geopolíticas dos países dominantes? Além da necessidade de desenvolver mecanismos de prevenção a esses sistemas, algo que ainda vem sendo estudado pelo mundo, o investimento na soberania tecnológica é uma urgência de segurança nacional, e nesse tema, estamos vulneráveis a várias potências internacionais. Você odeia os Estados Unidos? Deveria se preocupar com a soberania digital. Você odeia a China? Deveria se preocupar com a soberania digital também. Odeia todos? Então deveria se preocupar em dobro! Não odeia ninguém? Isso significa que você é maduro, então deveria se preocupar dez vezes mais, compreendendo a importância da soberania nacional para além do alinhamento ideológico.
Referências:
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância: A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Trad. George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
FRAZÃO, Ana. Fundamentos da proteção dos dados pessoais – Noções introdutórias para a compreensão da importânca da Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato (Coord.). Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. 2.ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
DAYEN, David. The Android Administration: Google’s Remarkably Close Relationship with the Obama White House, in Two Charts. Disponível em: https://theintercept.com/2016/04/22/googles-remarkably-close-relationship-with-the-obama-white-house-in-two-charts/. Acesso em: 16/03/2021.