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  • Diogo Teixeira

O coquetel molotov na caverna


 

Por Diogo Luiz Teixeira dos Santos

Pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito. Pós-graduado em Administração. Graduado em Direito e em Turismo. E-mail: diogotx@gmail.com

 

E se o rei-filósofo nos abandonou? E se só nos restou o bobo?




Não são fáceis esses tempos contemporâneos. Aparentemente, cada um tem o mito que merece, e a nossa conta aqui no Brasil não parece fechar há algum tempo. Está ficando cada vez mais difícil conciliar as tarefas de viver normalmente e conviver loucamente, na sensação que cada dia na política poderia ser o último, dado o eloquente despautério de muitos dos gestos e atos de alguns de nossos líderes. Haverá aquele que dirá: andar loucamente é andar ao menos. Isto é verdade. Todavia, como descobriu Alice, perambulando pelo País das Maravilhas, a direção sempre será relevante[1].


É certo que há um bobo[2], de pé, na entrada da caverna. Disseram-nos que ele poderia trazer a tocha, a fagulha, o fio de esperança. Mas não foi o caso. Traz nas mãos um artefato combustivo, um coquetel molotov, pronto para nos carbonizar; mandar-nos pelos ares. Seria este o nosso líder? E se, então, o rei-filósofo nos abandonou? Será que tudo não passou de uma quimera ou um devaneio? Talvez voltar um pouco no tempo possa nos ajudar no que tange a tais colocações.


No Século IV a.C., Atenas vivia sob um regime de preceitos democráticos. Por sua vez, Platão, insigne filósofo ateniense e contemporâneo ao período derradeiro desse momento histórico, certamente não era um homem de viés democrático. Porém, antes de começar a tacar pedras no homem, é preciso tentar colocar-se em seu lugar, à luz de seu tempo. Não deve ter sido fácil ver o seu mestre e grande referência em vida, Sócrates, morrer em decorrência de uma decisão tomada na instância dessa mesma democracia, exatamente por deliberações populares, oriundas das manifestações de seus concidadãos. O processo de Sócrates foi amplamente estudado desde então e normalmente é citado como um exemplo de injustiça, sendo uma das referências práticas para o conteúdo teórico do trabalho posterior de Platão. Nascido no seio de uma família aristocrática e imprimindo certa visão elitista à concepção de mundo ideal, Platão saiu da Atenas para o Olimpo da intelectualidade, dentre outras fantásticas, muito devido à sua obra “A República” e, especificamente, a uma imagem metafórica sua conhecida como “alegoria da caverna”[3]. Explico, resumidamente:


Na caverna de Platão, há muitos homens. Eles estão acorrentados, impossibilitados de se moverem, com os olhos fixados na parede à sua frente, observando sombras que, como em um teatro, perpassam incessantemente, refletindo pessoas e objetos que transitam atrás de si. Apenas uma penumbra ilumina a caverna, de modo que seria muito difícil enxergar no “mundo real”, ou seja, fora da caverna, caso lograssem sair. De maneira que, quando um deles finalmente foge do buraco, tem dificuldades para se ambientar, mas acaba por se acostumar à nova realidade, percebendo que a vida lá dentro era uma ilusão. Ao voltar à caverna para contar as boas novas aos seus companheiros, acaba morto por eles, já que a vida naquela ilusão já parecia deveras confortável aos seus habitantes. Assim, para os cavernosos seria uma questão de perspectiva, pois não são eles quem não enxergam, mas foi a visão do fujão a prejudicada por toda aquela claridade. Para Platão, aquele que tenta mostrar a realidade, —leia-se filósofo —, é morto por aqueles que não querem vê-la e vivê-la.


A narrativa da caverna tornou-se uma das mais conhecidas da história da filosofia. Também foi importante no processo de legitimação da concentração de poder nas figuras de um só homem. Afinal, se justo é que cada um honre a sua tarefa[4], e se a tarefa do rei-filósofo é, de acordo com a sua aptidão, governar, logo é justo que ele, sendo a autoridade legítima[5], seja respeitado e preservado como elemento proeminente na República platônica. Com o passar dos anos, muitos reis “saíram da caverna” e subjugaram seus súditos, sem que esses mesmos reis fossem, obrigatoriamente, filósofos. Como dito, trata-se de uma narrativa vencedora, sendo-nos bastante familiar.


Talvez Platão estivesse certo. Talvez, não. Talvez não haja saída da caverna quando se dá o poder de deliberação, escolha e decisão ao povo, que eventualmente escolherá um tirano. Talvez, na possibilidade de um tirano, seja melhor dar o poder ao povo afinal. Se de fato os tiranos erigem-se da deturpação dos reis[6], então quem sabe este seja um dilema sem solução. Ainda assim, frise-se: este não é um texto pessimista. Também não é exatamente otimista. O que se propõe é um exercício descompromissado, sem querer nunca, jamais, de forma alguma, defrontar com a obra daquele considerado, por muitos críticos, o maior escritor que o Ocidente conheceu. Entretanto, válida é a tentativa.


Qualquer pessoa que já tenha feito um passeio em meio à natureza e adentrado uma caverna ou uma gruta deve saber que não se trata, obrigatoriamente, de um buraco em uma pedra. Pode ser, além disso, a porta de entrada ou saída de algo bem mais amplo e multiforme, como um complexo ou uma galeria. Idas e vindas, altos e baixos; inconformismo geológico. A beleza dessas estruturas pode residir exatamente em seus caminhos mais profundos e subterrâneos. A caverna platônica é, sim, um buraco na pedra, uma via sem saída, cerrada em si. Mas, no Século XXI, quem sabe seja necessário dilatar a metáfora: ao invés de asfixiante, não poderia a caverna mesma nos revelar rotas alternativas nas quais pudéssemos encontrar soluções mais plurais e isonômicas e, assim, justas? Retomando o caso do País das Maravilhas, e se o próprio buraco nos levasse a acreditar que a vida pode ser mais satisfatória quando consideramos um leque maior de possibilidades? Para tanto seria preciso que, como Alice, não curvemos, resignadamente, a cabeça à majestade.


Os gregos clássicos não conheciam o conceito de sociedade, mas nós sim. Quiçá necessitaremos cada vez mais encará-las como esses complexos dinâmicos e conectados de possiblidades. Todos nós sabemos o destino da democracia ateniense clássica, mas não sabemos o de nossas sociedades contemporâneas. Então, na provável impossibilidade de reis-filósofos para nos guiar; e na certa presença de bobos constantes para nos desviar do caminho, que cada um de nós tome uma lanterna e, juntos, encontremos uma saída para a atual situação. Ou isto, ou o risco de permanecermos acorrentados, no escuro, como Platão imaginou que seria caso a massa não se deixasse levar por um líder supostamente iluminado.


E, por favor, quem sair por último NÃO! apague a luz.

 

[1] CARROLL, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland and Through the Looking-Glass. Nova Iorque, EUA: Oxford University Press, 2009, p. 57 [2] Usualmente, o termo “bobo” (do latim “balbus”, aquele que gagueja, gago) é utilizado para indicar quem faz troças e diverte os demais. Aqui, relaciono esta ideia ao termo “oeste” (do grego “dýsi”, onde morre o sol), a fim de identificar esse mesmo personagem que, sentando-se ao lado ocidental do rei, simboliza o inabitual, o súbito e o incerto, portanto apresentando riscos. Para uma análise aprofundada, cf. NASCIMENTO, Aldo Antônio Tavares do. Bobos e palhaços: estética da so(m)bra. Griot: Revista de Filosofia, v. 13, n.1, p. 428-450, 2016. [3] PLATÃO. A República. Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, 514a-517c. [4] Ibidem, 370b. [5] PRADO, Ediano Dionisio do. Idealização e empirismo: Platão e Aristóteles – dois precursores controversos da Ciência Política. Rev. Sítio Novo, Palmas, v.4, p. 188-201. Out./dez. 2020. [6] ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2017, p. 110.

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