- Christian Velloso Kuhn
PEC Emergencial e a Estadofobia do Governo Bolsonaro
Atualizado: 15 de abr. de 2021
Christian Velloso Kuhn
Economista e professor do Instituto PROFECOM
No início desse mês, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) confirmou a queda de -4,1% do PIB em 2020, registrando o maior recuo desde 1996, quando se iniciou a série histórica dessa variável na atual metodologia aplicada pelo instituto[i]. Contudo, observando uma série mais longa, é a maior retração no PIB nos últimos 30 anos, só abaixo da forte variação negativa de 1990 (-4,35%). O drama se torna mais grave em virtude da recessão de 2015-2016 (-3,5% e -3,3%, respectivamente) e do baixo crescimento no triênio 2017-2019 (crescimento médio anual de 1,5%), insuficiente para trazer o PIB aos níveis de 2014, maior patamar atingido por essa importante variável macroeconômica. Com essa forte queda em 2020, atualmente o PIB se encontra 4,4% abaixo do nível de 2014. Para piorar a situação, comparativamente a outros países, com a queda do PIB de -4,1% no ano passado, o Brasil poderia ter tido metade das mortes por COVID-19 se tivesse conduzido melhor o combate à pandemia, como 20 países que adotaram ações mais tempestivamente e medidas de isolamento mais restritivas[ii].
Com esse recuo vertiginoso na atividade econômica, não é à toa que os pedidos de falência elevaram em 12,7% em 2020, enquanto que os pedidos de recuperação judicial aumentaram em 13,4% em igual período[iii]. Mesmo com as medidas econômicas paliativas para atenuar a crise sanitária no ano passado, como o apoio a micro e pequenas empresas, estados e municípios e o auxílio emergencial desde agosto, houve uma considerável quebradeira de diversas firmas, pressionando pela elevação da taxa de desemprego, que encerrou o ano em 13,9%, melhora em relação ao trimestre anterior (14,6%).[iv]
Não obstante tal cenário calamitoso, as perspectivas para 2021 seguem otimistas. O mercado estima um crescimento de 3,23% do PIB[v], contudo, essa projeção está muito mais embasada na aposta da vacinação permitir a abertura do comércio e flexibilização das medidas de distanciamento social, do que na expectativa de que as ações na área da Economia do Governo Federal surtirão um efeito positivo no estímulo da retomada econômica.
Vide, por exemplo, a recente aprovação da PEC 186/2019, que vem sendo convencionalmente denominada “PEC Emergencial”. Em que pese em 2019, essa PEC inicialmente ter foco na proposição de medidas voltadas ao controle de gastos e reequilíbrio fiscal, como diminuição de despesas com a folha do funcionalismo público, inclusive com a redução de 25% da jornada de trabalho[vi], felizmente tal medida não foi aprovada e a PEC foi em boa parte reformulada com o advento da pandemia da COVID-19. A versão aprovada pela Câmara Federal e pelo Senado retirou medidas para corte de gastos e apenas manteve aquelas que restringem o crescimento das despesas[vii].
A principal medida da PEC é a permissão de oferecer o auxílio emergencial em 2021, porém, estabelecendo um teto para esse programa de R$ 44 bilhões. A forma de financiar o auxílio será mediante créditos extraordinários, isto é, via endividamento público. Para tanto, o governo retirou as despesas desse programa do cálculo do Teto dos Gastos, de modo a não ferir o estabelecido na PEC 55/2016. O pagamento se dará em 4 parcelas em valor médio de R$ 250,00, podendo oscilar de R$ 175,00 (para pessoas que vivem sozinhas) a R$ 350,00 (mulheres chefes de família). Nesse caso, o valor teto do programa será suficiente para atender, em média, cerca de 44 milhões de beneficiados, podendo variar de 26 a 63 milhões de indivíduos que poderão receber o auxílio.
Muito embora permita atingir um contingente significativo de pessoas, é abaixo dos 67,9 milhões que receberam em 2020[viii]. Ademais, se fosse mantido o valor de R$ 600,00 por beneficiado, o montante de R$ 44 bilhões seria suficiente para pagar, aproximadamente, apenas um mês do auxílio emergencial. Essa quantia é equivalente a tão somente 14% do dispêndio do governo federal com esse programa no ano passado (R$ 293 bilhões).
Conforme eu já havia exposto em artigo anterior nessa coluna[ix], para que tenhamos de fato uma recuperação em V, “requer a emergência de um ‘cavalo de pau’ na orientação da política econômica do governo, abandonando a agenda de Guedes e adotando medidas expansionistas além da continuidade do auxílio emergencial, como impostos sobre capital, lucros e dividendos, heranças, grandes fortunas e bens de luxo, com capacidade de aumentar a propensão a consumir mediante programas governamentais de crédito empresarial, auxílio a governos estaduais e municipais, investimentos públicos e demais alternativas que de fato induzam o crescimento econômico”.
Ocorre que, além de ter reduzido significativamente tanto o valor per capita do auxílio emergencial, como restringido o montante a ser gasto pelo programa nos seus 4 meses de duração prevista, o novo auxílio emergencial não veio acompanhado de qualquer outra medida expansionista que estimule a retomada da atividade econômica, como as que propus no artigo acima. Adicionalmente, um valor inferior por beneficiado significa um baixo estímulo para o consumo das famílias e, consequentemente, faturamento das empresas, lucro dos empresários e renda dos trabalhadores.
Para recrudescer ainda mais este quadro nebuloso, o governo parece reproduzir internamente a aplicação de uma espécie de “Estadofobia”, conceito de Michel Foucault para “criticar e alertar contra teorias políticas que exageraram no papel negativo do Estado na sociedade e na história humana” (ANDRADE, 2020, p. 1-2)[x]. Esse pensamento a respeito do Estado brasileiro pode ser evidenciado tanto na série de discursos de Bolsonaro, Paulo Guedes e outros membros do governo, como em medidas adotadas ou defendidas pelo governo federal, como reformas (Previdenciária e Administrativa), privatizações (Correios, Eletrobrás, etc.) e outras (MP Liberdade Econômica, Marco do Saneamento, etc.).
A PEC 186/2019 não é diferente. A manifestação de “Estadofobia” aparecia tanto na medida inicial de redução da jornada de trabalho do funcionalismo público, não aprovada pelo congresso, como no artigo 167-A que insere na Constituição (este sim com aval do legislativo). Tal artigo impõe que quando as despesas correntes atingirem 95% das receitas, em 12 meses, os governos estaduais e municipais poderão usar mecanismos de contenção de gastos, como veto a reajustes salariais, criações de cargos, contratações, realizações de concursos públicos, criação e aumento de benefícios, despesas obrigatórias e incentivos tributários. Aqueles que estiverem entre 85% e 95%, podem também aplicar esses instrumentos, conquanto obtenham autorização do poder legislativo. Se fosse aplicada atualmente, pelo menos 3 estados da federação poderiam aplicar tais mecanismos (RS, MG e RN), enquanto outros 16 precisariam requerer autorização ao Legislativo.
Observa-se, portanto, que se por um lado, a PEC Emergencial proporciona a retomada do auxílio emergencial, em contrapartida, recai sobre aqueles estados com maiores dificuldades fiscais a imposição de ajustes contracionistas, sobretudo sobre a folha de pagamento do funcionalismo público. Ainda, preserva inalterados os interesses e benefícios daqueles que menos contribuem para o fisco, que são os rentistas, detentores de grandes fortunas, grandes empresários, donos de igrejas e outros membros da elite do 1% mais rica do país. Enquanto isso, vende-se o mantra do Estado mínimo, e que a grande mídia propaga como se uma verdade irrefutável fosse, de que o governo gasta demais (ou gasta mal), que é ineficiente, e que a solução é reduzir os vencimentos do funcionalismo público (ou mesmo o tamanho do seu quadro). Essas medidas atingem uma parcela da população cujos maiores salários se encontram, na melhor das hipóteses, no máximo entre os 10% mais ricos. Entretanto, a grande maioria do funcionalismo público (professores, profissionais da saúde, policiais, dentre outros) recebe o mesmo que a renda média dos brasileiros. Os mecanismos da PEC 186/2019 tendem a piorar o já deteriorado quadro do serviço público prestado pelos estados e municípios, e agravar, sobretudo, em um período totalmente inadequado, enquanto vigora uma pandemia na sua terceira onda que já levou quase 280 mil vidas no Brasil. Se o governo federal seguir apostando na agenda liberal de Guedes, e na restrição de instrumentos de estímulo à recuperação da atividade econômica, como a PEC 186/2019, a receita de estados e municípios tende a cair mais, levando outros estados a se enquadrarem no limite de 95% de despesas sobre as receitas. Desse modo, fica difícil sustentar perspectivas positivas em 2021 tanto para a economia, quanto para a saúde e sobrevivência dos brasileiros com sucessivas medidas errôneas e omissões do Governo Bolsonaro.
[i] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/pib-do-brasil-cai-41-em-2020-e-recuperacao-desacelera-para-32-no-ultimo-trimestre.shtml?origin=folha# [ii] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/pib-caiu-menos-em-paises-que-reagiram-rapido-a-pandemia.shtml. [iii] https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/01/13/pedidos-de-falencia-de-empresas-aumentam-12-7-em-2020-diz-boa-vista [iv] https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2421/pnact_2020_4tri.pdf. [v] Boletim Focus do Banco Central do Brasil de 12/03/2021. Ver https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20210312.pdf. [vi] Ver texto inicial da PEC 186/2019: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139702. [vii] https://www.poder360.com.br/economia/entenda-o-que-muda-com-a-aprovacao-da-pec-emergencial/. [viii]https://www.contabeis.com.br/noticias/46336/auxilio-emergencial-governo-apresenta-perfil-dos-beneficiarios-em-2020-55-sao-mulheres/. [ix] https://www.wecoletivo.com/post/aux%C3%ADlio-keynesiano-a-emerg%C3%AAncia-de-uma-recupera%C3%A7%C3%A3o-em-v. [x] ANDRADE, Henrique Sater de. A fobia do Estado em leituras de Foucault. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30(4), e300421, 2020. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/physis/v30n4/pt_0103-7331-physis-30-04-e300421.pdf. Acessado em 15 de março de 2021.