- João Pedro Boechat
Por que desmilitarizar a segurança pública? Urgências e novas estratégias
Atualizado: 24 de jul. de 2021
João Pedro Boechat,
23, estudante do 10º período de Direito na UFF-Niterói, militante do Direito UFF Antifascista e da Juventude Socialista – PDT Niterói, presidente da Liga das Atléticas de Niterói, ex-presidente da A.A.A.C.G. Direito UFF e da Liga Jurídica Carioca.
Sempre se debateu muito sobre a desmilitarização das forças de segurança no Brasil e no mundo. O famoso grito de ordem “Não acabou! Tem que acabar! Eu quero o fim da Polícia Militar!” ecoa há décadas pelos protestos em nosso país. Infelizmente, um assunto tão sério e urgente encontra barreiras para o debate, inclusive em seu próprio nome. Por mais que a palavra “desmilitarizar” tenha um sentido literal consonante com a proposta, ela remete erroneamente, no senso comum, ao desarmamento e ao fim dos policiais militares, com o consequente desemprego de seus agentes, graças à desinformação propagada pelos interessados na manutenção do status quo, somada ao esvaziamento do debate sobre o tema proporcionado pela grande mídia e pelo campo progressista. Além disso, a palavra tem uma conotação negativa, enfraquecedora, que afeta a honra dos soldados orgulhosos de seu ofício e de sua instituição. Se ao invés de desmilitarização, falarmos na Unificação das Polícias Estaduais, o próprio tema ganha novo fôlego, com uma semiótica empoderadora que traz a sensação de fortalecimento para as forças de segurança.
Muitos interpretam o tema da desmilitarização das Polícias Militares como um pedido para que a instituição seja extinta, para que os policiais percam seus empregos ou para que percam seus armamentos e equipamentos. A confusão feita com o nome ajuda o trabalho dos desinformadores e propagadores de fake news da direita e da extrema-direita, que associam o campo progressista com o crescimento da violência e da “bandidagem” por conta de sua defesa aos Direitos Humanos, e o fazem enquanto elegem milicianos, estes sim, representantes do crime organizado, e contribuem diretamente para o aumento da violência no Brasil. Além disso, o próprio campo progressista muitas vezes se exime do debate, com medo do “desgaste eleitoral”, não enxergando que o maior empecilho para esses avanços é justamente a ausência de diálogo com a principal classe envolvida: os policiais militares.
A verdade é que a desmilitarização da PM não significa tirar suas armas, muito menos jogar os policiais militares no olho da rua. Na verdade, significa o fim do treinamento, da estrutura e da cultura militar nas forças de segurança pública. As propostas giram em torno da unificação das Polícias Civis e militares estaduais em uma organização única e civil estadual. Pretende-se, a desconstituição do caráter de força militar auxiliar conferida às Polícias Militares, atribuindo à Polícia Civil Estadual Unificada o ciclo completo da persecução Penal, isto é, a concentração na mesma corporação das atividades de investigação, prevenção e manutenção da ordem pública através do policiamento ostensivo, de forma a modernizar e humanizar a prestação do serviço essencial de segurança pública. É o projeto de abolição de um sistema atrasado e antiquado, que se demonstrou totalmente ineficiente para diminuir a violência e a criminalidade no Brasil, reflexo de um tempo que a Polícia existia para proteger o Estado do povo, e não o povo do crime. Esse fracasso na segurança pública acontece sobretudo porque a formação e a organização militar são incompatíveis com a função social da Polícia de garantir a segurança da sociedade de forma humana, cooperativa e comunitária.
A formação do policial militar valoriza a obediência absoluta em detrimento do debate e da reflexão; não o treina para ser policial, mas sim o transforma em combatente, enxergando como inimigo aquele a quem deveria proteger. Essa cultura, com o objetivo de “endurecer” o policial buscando prepara-lo para a realidade violenta do país, apenas ajuda a aumentá-la. Segundo pesquisa do Datafolha de abril de 2019, 51% dos brasileiros têm mais medo do que confiança na Polícia Militar, e apenas 47% confiam na mesma.
(1) Essa divisão entre os que confiam e os que têm medo da Polícia dificulta inclusive o próprio trabalho dela na solução de crimes. A ideia de um policiamento comunitário nunca vai se concretizar se o cidadão tiver medo de cooperar, falar com ou até mesmo passar perto de um policial ou uma viatura. A unificação das Polícias Estaduais em uma estrutura organizacional de formação civil e humanista, com recursos para efetivamente coibir a violência, com o ensino continuado de direitos humanos, sociologia, criminologia e antirracismo é essencial para restaurar a confiança mútua entre as forças de segurança e a sociedade.
Essa ótica de nós contra eles, de combater o inimigo, da repressão violenta para manter a ordem no território, é válida em uma situação de guerra, onde as forças militares lutam até a morte para proteger o seu país de invasores externos. O policial militar brasileiro é treinado para ir para a guerra em um Estado que não entra nelas há mais de 70 anos; e pior, ele é treinado para guerrear dentro da sua própria Nação, contra seus próprios cidadãos. O treinamento militar das forças armadas voltado para a guerra, não pode servir de molde para o treinamento da Polícia na segurança pública.
Essa situação toma contornos ainda mais dramáticos quando falamos do estado onde vivo, o Rio de Janeiro. A PMERJ, responsável pelo recorde histórico de 1.814 pessoas mortas em ações da Polícia em 2019, que chega a cerca de um terço das mortes violentas no estado, superando inclusive, proporcionalmente em mortes por habitantes, até os criminosos do Estado de São Paulo (2). Embora, no mesmo ano, o número de homicídios tenha caído, especialistas ouvidos pelo jornal O Globo indicam que os indicadores não têm correlação; inclusive, os homicídios diminuíram nos bairros onde a letalidade policial também diminuiu. (3)
É essencial pontuar que 78% dos mortos nessas ações policiais do Rio de Janeiro são pretos e pardos, evidenciando o racismo estrutural que permeia a política, o treinamento e a organização da segurança pública do estado. (4) Em São Paulo, onde 30% da população é negra, 61% das vítimas de morte por policiais são negras, e 79% dos policiais envolvidos são brancos. (5) O ensino antirracista e políticas afirmativas antirracistas são essenciais para a solução do racismo institucional dentro das Polícias, que são historicamente um dos principais instrumento de opressão do povo preto no Brasil. Claro que essas afirmativas não são uma generalização para corporações com dezenas de milhares de policiais, que não são bandidos, e sim trabalhadores. Não obstante, também se deve constatar que a violência policial, sobretudo contra o jovem negro, não acaba no asfalto. Um estudo realizado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro indicou que, em 53,79% das condenações por tráfico de drogas no estado, a palavra dos policiais foi a única prova utilizada pelo juiz para fundamentar sua decisão. (6)
Há meio século, em seu livro “Genocídio do Negro Brasileiro”, Abdias do Nascimento (7) já denunciava como, “desde o início da colonização, as culturas africanas, chegadas nos navios negreiros, foram mantidas num verdadeiro estado de sítio”, destacando o papel da Polícia na repressão à religião e por consequência, à cultura africana, que lamentavelmente ocorre ainda hoje. Nesse tópico, a título de ilustração, destaco a criminalização da “vadiagem”; a existência, na década de 30, da Seção de Entorpecentes, Tóxicos e Mistificação na Polícia do Rio de Janeiro (8) para a perseguição do Candomblé e da Umbanda; e, nos tempos atuais, a política de ocupação promovida pelas UPPs – Unidade de Polícia Pacificadora no estado do Rio de Janeiro. Neste último destaque, é essencial ouvir a reflexão de Marielle Franco (9):
Esse simbolismo de guerra, que apresenta as favelas com as UPPs como se fossem territórios conquistados, é o mesmo que faz com que a página oficial da Polícia Militar, promovida pelo governo do Estado, tenha como seu endereço na internet “a família azul”. O simbolismo que os incorpora a umafamília, de membros que precisam estar juntos, entre eles, mas não com a população, só amplia o senso comum de que os policiais precisam se proteger entre si, para enfrentaremos conflitos, para o certo e o errado, como se fossem uma “nação”. Tal elemento simbólico, com uma grande carga ideológica de imposição da ordem, somente amplia o potencial de militarização que compõe essa corporação.
As duras leis militares também retiram do policial a autonomia para encontrar melhores soluções para os problemas que eles enfrentam no dia-a-dia. Até pouco tempo atrás, sendo uma determinada ordem legal, o policial era obrigado a obedecê-la para não ser preso por desobediência; e sendo ilegal, o risco era o mesmo (Em 2019, foi sancionada uma lei proibindo a prisão disciplinar de policiais e bombeiros militares, mas sua constitucionalidade já é questionada no Supremo Tribunal Federal pelo próprio governador em exercício do Rio de Janeiro). (10)
Não à toa já, vimos inúmeras vezes, policiais reprimindo violentamente protestos pacíficos de outras classes que assim como eles são trabalhadoras, sempre a mando de superiores que não estão na linha de frente.
Defendemos a estabilidade do servidor público pois ela permite que ele trabalhe sem medo de represálias; a situação vivida pelos policiais militares é exatamente o contrário! Os policiais, sejam eles civis ou militares, já não podem fazer greve, e é entendível que não o possam, pelo resultado do que aconteceu quando elas foram feitas. Acontece que os policiais militares também não podem se sindicalizar, tampouco, se filiar em partidos políticos, e isso tudo somado a dura hierarquia e disciplina militar a qual estão submetidos retira sua voz e cidadania para defender seus direitos e lutar por melhores condições de trabalho, o que torna ainda mais urgente a unificação das Polícias em uma instituição civil.
Essa não é uma demonização do policial militar; muito pelo contrário, é um passo importante para restaurar a confiança da sociedade nas forças de segurança, e na melhora das condições de trabalho e, consequentemente, de vida dos policiais.
Nós precisamos de uma Polícia Estadual integrada, civil, com formação social que foque na solução de conflitos e na defesa dos direitos humanos, com mais direitos, melhor e contínuo treinamento, equipamentos, inteligência investigativa e acompanhamento psicológico. A valorização do profissional é essencial para o sucesso dessa mudança, mas com a proibição da sindicalização os próprios policiais não têm voz para fazer valer os seus direitos. Nesse ponto, é um dado extremamente alarmante que, no Brasil, país que possui a Polícia que mais mata e mais morre no mundo, morrem mais policiais por suicídio do que em confronto. (11)
Me arrisco a dizer que esse processo já teria acontecido se os policiais militares pudessem se sindicalizar e fazer valer sua voz no próprio debate sobre segurança pública. Uma pesquisa promovida pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2014, com policiais militares de todo país, indicou que 77% dos entrevistados não concordam que as Polícias militares e os corpos de bombeiros sejam subordinados ao Exército, como forças auxiliares, tal qual são hoje; que 53,4% dos policiais militares são contra serem julgados pela justiça militar; e que 80,1% dos policiais consideram haver muito rigor em questões internas e pouco rigor em assuntos que afetam a segurança pública. O diálogo sério e propositivo com os policiais da base é essencial para o sucesso político das propostas progressistas para a segurança. Todos sonhamos com um país mais seguro e inclusivo para os nossos filhos, mas o obstáculo para o consenso encontra barreiras na comunicação e na própria estratégia da esquerda. (12)
Algo se perdeu no diálogo com a classe para fazer com que ela apoiasse em peso, em 2018, um projeto de governo que a enxerga apenas como ponta de lança de um sistema de repressão social. O campo progressista deixou de pautar a séria questão da segurança pública com a prioridade que ela merece, e quando um lado não apresenta soluções para os problemas, o outro vence mesmo com soluções péssimas e retrógradas. Mesmo hoje, com a ascensão da extrema-direita, questões sérias da segurança pública são tratadas como tabu pelos grandes líderes progressistas, e enquanto a extrema-direita idolatra os profissionais de segurança pública ao passo que os manda para a linha de frente, a esquerda aborda esse tema de forma pouco estratégica, quando não o ignora completamente, sobretudo quando está no poder. Pela natureza constitucional da existência das Polícias Militares, a concretização desse projeto depende de um diálogo amplo que alcance inclusive os setores da sociedade que não se sentem representados pelo campo progressista, e a perspectiva de solução parece estar cada vez mais distante, com o crescimento assustador das milícias e o bloqueio que a grande mídia fez à esquerda no debate político público dos últimos anos.
Temas como a desmilitarização da Polícia, o fim da falida política internacional de Guerra às Drogas ou a violência racial dentro e fora das forças de segurança pública, não são debatidos com a urgência necessária pelo medo do “impacto eleitoral”, que acontece mais pela desinformação e pelas fake news facilmente propagadas nesses temas, em conjunto com o silêncio dos maiores líderes do campo progressista.
Alexandre Campos, representante do movimento Policiais Antifascismo, em entrevista para a revista Época em 2019, teceu a crítica justíssima de que a esquerda nunca se apropriou do debate da segurança. “Ela simplesmente se coloca a uma distância muito grande. As esquerdas tem falas que massacram ainda mais o policial que já é massacrado pelo sistema que está servindo. Por incrível que pareça, a esquerda só bate no policial da base. Eles não nos querem por perto, só nos querem como segurança” (13). Uma das principais bandeiras do movimento Policiais Antifascismo é disputar o reconhecimento dos policiais enquanto trabalhadores, pois só assim eles conseguirão efetivamente defender os direitos de outros trabalhadores.
Para a melhoria das condições de trabalho e sucesso das forças policiais, também é preciso direcionar maior investimento em inteligência e treinamento, e estabelecer um plano de carreira que permita ao policial alcançar, de fato, o topo da carreira na corporação, seja na especialização investigativa ou na preventiva. Não faz sentido, por exemplo, um estudante como eu, recém egresso de um curso de direito, sem nenhuma experiência prévia na área, estudar durante alguns anos e tornar-se um delegado, enquanto um profissional policial que dedicou a vida a combater o crime e proteger a população, nunca poder chegar lá por não ter nenhum suporte para isso dentro da estrutura da Polícia. É claro que uma mudança desse tipo caminha lado a lado com uma formação mais robusta, contínua e permanente para o profissional de segurança pública, pois as competências necessárias são muito diferentes. Entretanto, a experiência de quem trabalha no asfalto, na linha de frente, colocando a vida em risco, precisa chegar no gabinete de quem dá a ordem. E isso tudo só será possível se superarmos a lógica ultrapassada, retrógrada e militarística que permeia a nossa política nacional de segurança pública, da Constituição ao cárcere.
DADOS:
6: https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/palavra-pm-influencia-casos-trafico-estudo
7: NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016, página 97.
8: GERBER, Konstantin. Entre a espiritualidade e a regulação: usos medicinais, ritualístico-religiosos, tradicionais da cannabis e a Constituição Brasileira de 1988. Tese de Doutorado em Direito. Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2018. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/22309. Acesso em 19/12/2020
9: FRANCO, Marielle. UPP – a redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. 2014. Dissertação (Mestrado em Administração) – Programa de Pós-Graduação em Administração da Faculdade de Administração, Ciências Contábeis e Turismo. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/_bitstream/1/2166/1/Marielle%20Franco.pdf. Acesso em: 19/12/2020.
10: https://www.conjur.com.br/2020-nov-17/governador-rj-stf-permita-prisao-administrativa-militares
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