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  • Christian Velloso Kuhn

Privatização da Eletrobras e a Desestruturação do Setor Elétrico Brasileiro


 

Christian Velloso Kuhn

Economista e professor do Instituto PROFECOM

 

Em meio a uma crise sanitária e econômica sem precedentes, a Câmara dos Deputados aprovou na semana passada a Medida Provisória (MP) 1.031, que autoriza a alienação da Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobras), uma das maiores holdings do Setor Elétrico Brasileiro (SEB). Caso seja aprovada na íntegra no Senado, será enviada para o presidente sancionar. Do contrário, a matéria retornará para a Câmara dos Deputados para nova avaliação.


A Eletrobras é uma estatal cuja criação foi proposta ainda pelo presidente Getúlio Vargas, em 1954. Todavia, em virtude da forte oposição que sofreu essa proposta, sua aprovação só se deu sete anos depois de tramitar pelo Congresso Nacional. Quem autorizou mediante lei a União a constituir a Eletrobras foi o presidente Jânio Quadros, em 1961. Mas só foi no ano seguinte, em 1962, que a Eletrobras foi inaugurada pelo presidente João Goulart.


Na sua concepção, a Eletrobras recebeu uma série de incumbências, como “promover estudos, projetos de construção e operação de usinas geradoras, linhas de transmissão e subestações destinadas ao suprimento de energia elétrica do país”[i]. A empresa operou dessa forma até a primeira metade dos anos 1990, quando o SEB e outros setores de infraestrutura, como as telecomunicações, passaram por um processo de reestruturação com a permissão da entrada da iniciativa privada, e no caso do SEB, primeiramente nos segmentos de geração e distribuição de energia elétrica.


A Eletrobras perdeu algumas de suas atribuições, como a realização de estudos e planejamento do SEB, que foi repassada para a Empresa de Pesquisa Energética (EPE)[ii], criada em 2004. Por outro lado, com as privatizações ocorridas de 1995 a 2002, sobretudo de distribuidoras estaduais, a Eletrobras precisou assumir o controle de algumas das empresas desse segmento em estados do Centro-Oeste[iii], Norte e Nordeste, que foram posteriormente vendidas até 2018.


A intenção de vender a Eletrobras já tinha sido comentada nessa coluna, no artigo publicado em janeiro de 2020 no We Coletivo, “Privatizações e Precarização de Estatais: O Estado Corretor de Guedes”[iv], em que o ministro da Economia justificou em entrevista que a alienação da estatal serviria para “aumentar a capacidade de investimento da companhia e combater a corrupção”. Naquele artigo, já havia discernido a concepção de Estado liderado por Paulo Guedes, que ao invés de conduzi-lo voltado para o combate à desigualdade e ao atraso socioeconômico (Estado Desenvolvimentista), prefere se desfazer de seus ativos a cifras inferiores ao que efetivamente valem, com vistas a proporcionar lucros não operacionais e rentistas a determinados agentes do setor privado (Estado Corretor).


Essa justificativa de privatização para elevar os investimentos não é a primeira vez que é utilizada pelo Governo Federal. No meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Ciências Econômicas em 2000, intitulado “Investimentos e Financiamento do Setor Elétrico Brasileiro dos anos 1970 a 1990[v], pude comprovar que essa premissa não se realizou logo após as privatizações, basicamente porque naquela oportunidade, devido a uma má condução da política do SEB pelo Governo FHC, a venda das estatais iniciou antes da nova regulação do setor elétrico (e da criação da Agência Reguladora, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, em 1997), o que inibiu os investimentos dos novos acionistas, sem saber como funcionariam as novas regras e, consequentemente, como se daria a remuneração desses investimentos.


É claro que desde então, principalmente com o novo marco dos SEB em 2004, a regulação do setor foi melhor estruturada e a própria ANEEL se consolidou com uma das melhores agências reguladoras do Brasil. Logo, esse não seria mais um empecilho para as privatizações. Contudo, cabe destacar uma das mudanças incorridas a partir do marco de 2004, que foi a desverticalização do setor, impedindo que empresas dos segmentos de geração e transmissão também operassem no segmento de distribuição e vice-versa (mas com a permissão de que fizessem parte do mesmo grupo empresarial). Com isso, acabaram as possibilidades de firmar acordos bilaterais, como a compra direta de energia elétrica das geradoras por uma mesma empresa que atuasse como distribuidora, ou ainda do mesmo grupo. Dessa forma, o SEB passou a incorrer em um conceito muito difundido na Economia, Custos de Transação[vi], criado a partir dos estudos do economista Ronald Coase (1937). Fundamentalmente, esse conceito serve para mostrar os custos gerados com a realização de transações com terceiros, recorrendo ao mercado, como firmar, negociar e fiscalizar contratos, controle dos direitos de propriedade, monitoramento do desempenho da compra de bens e serviços prestados por terceiros, etc. Assim, aplicado ao SEB, a separação de empresas geradoras e transmissoras das distribuidoras obrigou que essas últimas precisassem adquirir energia elétrica das primeiras em leilões, aumentando significativamente os custos de transação com contratos e perdas de economia de escala.


Essa situação acima descrita é importante na hora de avaliar a proposta da MP 1.031 para privatizar a Eletrobras. Por esse motivo, muitos têm apontado críticas a essa iniciativa do Governo Federal. Um dos pontos é a obrigação da construção de usinas térmicas a gás natural e de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) no interior do país, com a realização de leilões das energias geradas por essas usinas, que para alguns pode incorrer em elevação das tarifas de energia elétrica (e consequentemente o encarecimento das contas de luz)[vii]. Outro ponto é os investimentos regionais que a Eletrobras precisará realizar para revitalização da bacia do Rio São Francisco, as bacias dos reservatórios da usina de Furnas e na diminuição dos custos de geração de energia na Amazônia, perfazendo um total de quase R$ 4 bilhões em 10 anos. Certamente, os interessados em adquirir a Eletrobras considerarão a obrigação de realização desses investimentos para precificar os valores oferecidos no leilão de desestatização, pois é importante lembrar que o setor privado é movido para geração de lucros, o que não necessariamente se verificará nesses investimentos, com cunho mais social e voltados a políticas regionais, duas atribuições mais apropriadamente do Estado.


Nesse mesmo sentido, a Associação dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres (ABRACE) prevê que os consumidores poderão sofrer com um aumento de R$ 20 bilhões caso seja efetivada a privatização da Eletrobras[viii]. Isso porque, segundo a associação, com “a contratação de termelétricas em quantidades e locais já definidos, sem suporte e estudo técnico, pode resultar no aumento de custo”. Para o setor produtivo, a ABRACE estima uma elevação de 20% na conta de energia, o que por sua vez pode provocar repasses desses custos e, consequentemente, por exemplo, no aumento nos preços do leite (10%) e da carne (7%). Outra proposta da MP que a associação prevê elevação das contas de energia é a de prorrogação do Programa de Incentivo às Fontes de Energia Elétrica (PROINFA), que compõe as tarifas de energia elétrica, na ordem de R$ 3 bilhões ao ano. Além disso, com a reserva de mercado para as PCHs, a ABRACE estima uma alta de R$ 1 bilhão nas contas de energia por 30 anos.


Outra associação que realizou importante estudo do impacto tarifário com a privatização da Eletrobras é Associação de Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (AESEL)[ix]. Um ponto relevante ressaltado pela AESEL é que a Eletrobras possui várias usinas remuneradas pelo sistema de cotas, com valores bem baixos, de aproximadamente R$ 61/MWh. Com a privatização, passaria por um processo de descotização, elevando as tarifas no decorrer de 30 anos.


Atualmente, com a hidrologia desfavorável, o risco hidrológico tem majorado esse custo para R$ 93/MWh, ainda assim abaixo do preço de mercado. De acordo com a MP, segundo estimativas do Ministério de Minas e Energia (MME), os preços da venda de energia dessas usinas se elevariam para R$ 155/MWh no período de 2022 e 2029, e, para R$ 167/MWh entre 2030 e 2051. Desse modo, o preço da energia comercializada pela Eletrobras sofreria altas de 67% e 80% respectivamente.


O mesmo estudo realizado pela associação prevê que, com isso, poderá ocorrer um aumento de 14% nas tarifas das distribuidoras de energia elétrica, mais que o dobro da inflação (IPCA) acumulada nos últimos 12 meses até abril/2021 (6,76%)[x].


A AESEL ainda destaca outros aspectos importantes dessa MP, como a possibilidade de maior concentração e oligopolização do setor elétrico brasileiro, haja vista que a Eletrobras detém 30% da geração e 40% da transmissão de energia elétrica. Também pontua que o Brasil estaria indo de encontro a prática de vários países desenvolvidos e emergentes que mantém a forte participação estala no setor elétrico, como EUA, China, Rússia, Índia, dentre outros.


Cabe destacar ainda que a Eletrobras é uma empresa eficiente, quando comparada a grandes empresas mundiais do setor, possuindo o menor índice de número de empregados por MW instalado (0,4)[xi]. Uma explicação dessa queda no índice é a brutal queda do número de funcionários de 2016 para março de 2020, de 26 mil para pouco mais de 12 mil empregados.


Ademais, consoante Paulo Rabello em seu artigo recente[xii], há uma série de imprecisões que influenciam no valor da Eletrobras, como a retirada de ativos como Itaipu e Angra, se a energia será vendida no mercado cativo ou livre, como será o crescimento da economia, etc. O economista também prevê que entre os possíveis interessados, é bem provável que estejam estatais e fundos de pensão públicos de outros países, como a China. Caso o governo siga com essa estratégica equivocada de manifestações públicas de seus membros contra o país asiático, é muito provável que isso interfira na definição de investimentos de suas empresas instaladas no Brasil, arriscando impactar com uma possível venda da Eletrobrás para os chineses. Outra crítica importante de Rabello é que os deputados não tiveram tempo suficiente para analisarem essas e outras questões de alta complexidade que exige um processo de privatização de uma estatal gigante e estratégica como a Eletrobras.


Quando o Brasil mais precisa de políticas de crescimento e desenvolvimento socioeconômico, em meio a uma forte pandemia, infelizmente, tanto o governo federal, como a maioria do Congresso Nacional, cúmplices dessa iniciativa, desviam a atenção para uma proposta que pode majorar fortemente as tarifas de energia elétrica, gerando mais custos aos consumidores, inclusive inflação de bens que usam a energia elétrica como insumo na produção, e elevando o nível de desemprego com a iminente demissão de mais empregados da Eletrobras. Certamente, não é uma prioridade diante do catastrófico cenário econômico e social que estamos (sobre)vivendo atualmente. É uma medida inconsequente de um governo ideológico e tecnicamente precário.

 

Referências: [i] https://eletrobras.com/pt/Paginas/Historia.aspx. [ii] https://www.epe.gov.br/pt/a-epe/quem-somos. [iii] Foi o caso da CELG, a distribuidora de Goiás, que foi primeiramente federalizada, mas em maio de 2015, ainda na gestão da presidente Dilma, foi incluída no Programa Nacional de Desestatização (https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/transparencia/desestatizacao/processos-encerrados/desestatiza%C3%A7%C3%A3o-celg-d). A privatização da CELG foi concluída em 2018, no Governo Temer, quando a estatal italiana ENEL a adquiriu por cerca de R$ 2,2 bilhões (https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/celg-d-e-arrematada-pela-italiana-enel-brasil-por-r%24-2%2C187-bilhoes). [iv] https://www.wecoletivo.com/post/privatiza%C3%A7%C3%B5es-e-precariza%C3%A7%C3%A3o-de-estatais-o-estado-corretor-de-guedes. [v] Por meu TCC pela PUCRS, obtive o 2º lugar no XV Prêmio Conselho Regional de Economia do RS (CORECON/RS) de Monografias em 2001 e conquistei em 2002 o 1º lugar no IX Prêmio Brasil de Economia - Categoria Monografia de Graduação, do Conselho Federal de Economia - COFECON. [vi] https://pt.wikipedia.org/wiki/Custo_de_transa%C3%A7%C3%A3o. [vii] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/05/19/camara-aprova-venda-da-eletobras-deputados-ainda-votam-mudancas-no-texto.htm. [viii]https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/05/19/privatizar-eletrobras-custos-associacao.htm. [ix] https://vermelho.org.br/2021/05/10/privatizacao-da-eletrobras-e-impactos-tarifarios-para-os-brasileiros/. [x] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/05/11/ipca-inflacao-oficial-desacelera-e-fica-em-031percent-em-abril.ghtml. [xi] https://disparada.com.br/entendendo-o-crime-privatizacao-da-eletrobras. [xii] https://www.em.com.br/app/colunistas/paulo-rabello-de-castro/2021/05/22/interna_paulo_rabello_de_castro,1269144/se-a-eletrobras-for-mesmo-privatizada-seria-privataria.shtml.

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