- Thiago Anastácio
PUNIR
Por Thiago Anastácio
Advogado Criminalista
Em tempo de vigiar e se fazer vigiado pelas redes sociais, punir é consequência lógica para o animal ser humano e não, não é preciso descer aos fundos de Foucault para concluir isso. Punimos com o fígado e essa é a razão pela qual, há centenas de anos, punimos da mesma maneira: trancamos e deixamos lá.
Talvez por isso Dumas, em momento de grande inspiração, criou a fantasia da masmorra que fez bem e formatou Edmund para sua vingança com as secretas visitas do Abade Faria – e com a transmissão de toda a sua cultura ao marinheiro ignorante, transformando-o pelo conhecimento e também com a fortuna de um grande segredo.
Mas essa era a alegoria do gênio francês e por isso mesmo é que encantou... Pois uma fantasia. Masmorras são masmorras e Abades geniais não nos visitam para aulas de pós-doutorado nos frios das pedras.
O que mudou ao longo dos séculos é que estabelecemos o tempo do trancamento e criamos desejos jamais aceitos; o principal dentre eles foi algo chamado de ressocialização (assunto que passa por uma série de escolas do pensamento sobre a execução penal, inclusive com teias econômicas da industrialização vertendo força sobre os objetivos de punir).
Pensaram os “ressocializadores”, vejam que pecado, que se a punição era uma certeza necessária, que ela fosse útil para a sociedade. Aquela coisa: se é para existir uma ação do Estado, que ela fosse útil. Mas vocês sabem como é...
E o é (na verdade, não é), pois que falsos eruditos do sistema sempre criticaram a ressocialização mesmo sem nunca terem visto a sua aplicação e claro, terem lutado e muito contra a sua implementação, nessa sabotagem de motivos escusos e secretos; assim como ocorre com médicos que mudam o medicamento antes de ministrarem as drogas e verem se elas são eficazes.
Sim, muita coisa que acontece no direito não tem o mínimo de sentido científico.
Querem um exemplo? O tempo de pena.
Não há ninguém no mundo civilizado que indique a razão da quantidade X de pena para um tipo de crime. Não se fala aqui, é claro, de alguma proporcionalidade entre as penas dos crimes que violam os bens jurídicos vida, patrimônio, liberdades, administração da Justiça, administração pública etc.
Logo, não se fala aqui da proporcionalidade - é melhor repetir - de não se punir com mais tempo de prisão quem viola a administração pública do que quem mata alguém. O ponto não é esse.
A questão é: porque a pena de seis (6) anos para o crime de homicídio, e não cinco (5), ou sete (7)?
Não há ciência sobre isso. Nenhuma. Logo, os dogmas do direito (principalmente o penal) falam apenas da equação sobre punir, abarcando nestas as previsões de possíveis condutas que a sociedade repudie e queira punir os autores e proteger os bens jurídicos afetados, o que por si só é uma arte de complexidade acachapante.
Ou seja, damos o remédio sem aquilo que aprendemos na pandemia vivente: sem método científico de dose e suas consequências no corpo individual e social.
Até íamos bem sobre os debates de como punir e por que punir (melhor e com alguma finalidade), até que caímos no fetiche dos trancadores reacionários: trancar. E com isso nos perdemos novamente.
Em países de desenvolvimento retardado pela política e escândalos políticos, é muito difícil que a linha do tempo evolutivo transcorra em linha reta e lógica. Mas precisamos voltar a falar disso.
O direito penal, que antes tratava de violência e fraudes, se expandiu na visão perfeita do gênio de Jesus Maria Silva Sanchez.
E então surge uma pergunta que já está no lugar comum: por qual razão, no mundo que gira em torno do DINHEIRO (capital), as penas ainda são discutidas em torno de trancar o corpo numa cela e não punir onde mais o ser humano ocidental preza, no bolso?
Para que punir o grande empresário com a prisão, destruindo sua empresa e milhares de empregos, e não lhe impondo multas relevantíssimas e obrigações de fazer melhorias graves em sua comunidade?
Para que destruir famílias que perdem pais e mães, mas não puni-los sem que se descaracterizem ainda mais moral e eticamente no sistema de masmorras?
Peguem o exemplo da Odebrecht: a empresa praticamente faliu, fato que afetou, em números baixos, centenas de milhares de pessoas (a empresa contava com quase 200.000 funcionários em seu auge).
E se fosse essa empresa obrigada por 15 ou 25 anos a construir, com seu know-how e investimentos próprios ou parciais, 10 presídios federias[i], 20 hospitais e 200 escolas por ano? Agora some todas as empresas nacionais que já se envolveram em crimes e pensem na beleza que seria a PENA que devolve ao povo, sua maior vítima, exatamente aquilo que tanto precisa.
Mas preferimos fingir que punimos... A operação Lava-Jato investigou e puniu os grandes empresários e estes já cumpriram suas penas – quase todos em casa, depois das delações premiadas. Punimos no sentido vingativo que a população tanto queria?
Não, não punimos. Prisão meus amigos, e por longo tempo, tem cor e classe social no Brasil. É método de diferenciação social-racial, de estigmatização e controle pelo medo.
Sim, empresários que confessaram a prática de crimes aos bilhões de reais ficaram poucos meses na cadeia; depois se foram para mansões cumprir as suas penas desde que delatassem políticos. Mas e o menino negro que vende 100g de maconha (para o filho do empresário, que se pego, faz um “acordo” na delegacia e a droga some) e cumpre três ou quatro anos de prisão em julgamentos tortos e preconceituosos.
Entendam o ciclo: optamos pela masmorra. E por ela ser masmorra, amontoamos as pessoas pobres – vítimas da roubalheira impune de décadas – por pequenos delitos (que só vemos em países subdesenvolvidos ou de grande desigualdade social) típicos da falta de cidadania, educação e discernimento sobre as consequências das ações... E chamamos de marginais, sim, em tom pejorativo, exatamente esses que deixamos, por descaso político (no caso do Estado) e ético e moral (no caso da sociedade e seus líderes), aqueles que foram deixados à margem social.
Estamos em 2021 e dezenas de milhões de brasileiros não têm saneamento básico! Vocês imaginam como era isso antes? Certamente, não era melhor.
Cria-se a miséria para atacar as consequências da miséria e lucrar com isso; e o mais grave, sem se apontar culpados, uma vez que o culpado é o que também julga ou escolhe os culpados a depender da temporada política.
Daí, não tem jeito.
No caso dos crimes não violentos (em alguns casos destes também cabe esta argumentação), precisamos parar de hipocrisia: no sistema capitalista, a grande maioria das penas deve ser no bolso ou com obrigações de fazer. Penas boas, que incomodem e muito, mas não tirem o sustento básico dos punidos.
Prisão deve ser utilizada apenas para poucos, aos violentos sem correção. Existem muitos, mas certamente eles não são novecentos mil.
E aqui é importante ser claro: não é porque a masmorra foi usada contra os pobres e pretos no correr dos séculos que devemos democratizar, com tons de vingança, esse método punitivo contra os ricos. Democratizar o absurdo e o inútil é uma forma de pensar podre, mentirosa e sem nenhuma utilidade prática.
Precisamos gastar menos e arrecadar mais para que as obrigações do Estado sejam cumpridas e punir direito.
Enquanto esse debate não for levado a sério no Brasil, o sistema de Justiça destoará de qualquer nova orquestração que se faça para o futuro.
Ou podemos continuar em 1846. Ano corrente, pelo que se percebe nos jornais.
Referências [i] Segundo informações, 5 presídios federais custaram 45 milhões de reais aos cofres públicos: https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/politica/2017/01/construcao-de-cinco-presidios-federais-tera-custo-de-r-45-mi.html Já o preço de um hospital de ponta, algo em torno de 70 milhões de reais: https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2019/07/inaugurado-ha-um-ano-ao-custo-de-r-70-milhoes-hospital-regional-oferece-somente-servico-ambulatorial-cjxqbqcgj006r01mkottpg03x.html Para cada escola, algo em torno de 2 milhões de reais: http://www.gcnoticias.com.br/educacao/estado-tem-um-orcamento-de-r-120-milhoes-para-construcao-de-escolas/20461568#:~:text=Cada%20unidade%20ter%C3%A1%20um%20custo,constru%C3%A7%C3%A3o%20de%2063%20novas%20escolas. E segundo Marcelo Odebrecht, OS VALORES DE PROPINA alcançaram 2 BILHÕES DE REAIS POR ANO: https://veja.abril.com.br/brasil/marcelo-odebrecht-diz-que-propina-foi-de-ate-r-2-bilhoes-ao-ano/