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  • Elza Mariana Mendonça

Sociedade do Cansaço: reflexões sobre a crise do trabalho na era da liberdade

A saída individual, a liberdade proclamada por quem não trabalha e não produz, aprofunda os destinos desiguais dos trabalhadores e trabalhadoras.

 

Por Elza Mariana Mendonça

Historiadora (UFPB) e Mestre em História (UFPB)

 

A tirinha Frank e Ernest, por Bob Thaves. Fonte: publicada no Jornal do Brasil em 19 de fevereiro de 1997.


Em 2010, o filósofo sul coreano Byung-Chul Han publicou o livro "Sociedade do Cansaço". Neste livro ele aborda a transição de uma sociedade disciplinar, muito bem estudada por Foucault, na qual os corpos e mentes são controlados e treinados para obediência, e descortina o surgimento da sociedade do desempenho, contemporânea às nossas vivências.


Enquanto na sociedade disciplinar a punição era a principal forma de controle social. Na sociedade do desempenho, os indivíduos são "livres" para almejar seus próprios padrões de vida. Porém, como é de conhecimento geral, os seres humanos são dependentes do trabalho que desempenham, a partir do qual são remunerados e custeiam a sobrevivência.


Dizia Karl Marx, que o trabalho é o momento no qual os seres humanos transformam a natureza. Ao longo do tempo, essas relações sociais vão se modificando em função da apropriação dos meios de produção, que passam de coletivos a privados. E para quem domina esses meios, o lucro se torna determinante na equação trabalho x tempo. Portanto, quanto mais se produz, mais vendas são feitas. A linha de montagem e a especialização do trabalho auxiliam na alienação sobre o produto final, a mercadoria. De modo que, ao olhá-la na vitrine, muitas vezes aquele trabalhador sublima a ideia de todo o esforço que foi empregado, por horas a fio, para que fosse finalizada e vendida a um preço muito maior do que a hora trabalhada. A esse fenômeno dá-se o nome de alienação do trabalho.


A garantia da obediência, ou melhor, da disciplina do trabalho, acontecia através das punições, fossem elas incentivadas pela lei (um exemplo era a lei da vadiagem durante a República no Brasil), ou circunscritas na forma como os espaços se apresentavam: a escola, o hospício, as prisões. A escola revelara sobremaneira a função social da Educação, menos libertadora e criativa, mais funcional e estreita.


A liberdade foi cantada em todas as revoluções sociais pelas quais os trabalhadores ousaram tomar conta de seus destinos e gritar as desigualdades. É fugaz, ideia substantiva da igualdade, do trabalho em comunhão com a natureza, semente das melhores virtudes que podemos desejar para o povo. Quem não gostaria de enterrar os presídios que nos cercam?


Desta ideia se apropriaram os carrascos do povo trabalhador: sejam livres e se dissociem! Na sociedade do desempenho, eu não preciso dos limites e da punição do outro. Agora, eu posso me autoexplorar em nome da liberdade de ser quem eu sonho, dos meus objetivos que nunca tem fim, e se afastam cada vez mais da dimensão humana, minha e do outro. O esforço sem limites do trabalho virtual, da informalidade cruel e do empreendedorismo selvagem.


É a era do acordado sobre o legislado. Ninguém conseguiu segurar a pressão dos setores mais destrutivos do tecido social do trabalho, da seguridade. A quebra deste pacto coletivo, a submissão de parte da política ao dinheiro sujo, a anomalia do Estado de Direito, o teto de gastos; amarra o trabalhador numa cultura social de egoísmo, baseada na palavra de falsos profetas, na Igreja e no Executivo. Em consequência, a crise do discurso e das imagens é capaz de nos fazer duvidar até do que escrevemos. Como fazer para que enxerguemo-nos?



No espelho, não o do meu quarto, mas das redes sociais, vejo o desfile sorrateiro de tudo que no pensamento deverá ser meu: as viagens, as roupas, as pessoas, aquela vida distópica e “tão real”, porque me mostra os bastidores do dia a dia de “guerreiros” e “guerreiras” no instagram. A produção de conteúdo diário dá conta de quem venceu na vida e no personagem, mas não consegue se livrar das amarras do consumo.


Somos livres para comprar, e comprar é nossa forma de viver a morte das nossas almas, o anestésico certo da depressão social que não é identificada. “Se eu não posso, um dia poderei”, eles pensam. Eu penso? O excesso de positividade define o tom dos nossos melancólicos dias e arrebata o sofrimento individual escondido, partilhado na desesperança com a política, na tentativa de encontrar o belo na superficialidade das nossas rotinas corridas.


Nesse mundo, mais vale quem melhor se vende como vencedor, mesmo que por dentro todos os medos o consumam, o paralisem, e revelem a grande crise social, ausência de um pacto coletivo de cuidado psíquico e físico (se é que essa divisão faz sentido). A necessidade de políticas públicas que reconheçam o Estado, a partir da vontade popular soberana, como o mediador dos nossos problemas.



A saída individual, a liberdade proclamada por quem não trabalha e não produz, aprofunda os destinos desiguais dos trabalhadores e trabalhadoras. A Educação, na contramão da criatividade, festeja modelos distantes, atrapalha o reconhecimento de classes, prepara com distorções para um mercado de trabalho amorfo, ultrapassado e narcisista. Quanto do meu trabalho engrandece o país e mobiliza o coletivo? Por quais meios a Educação vai pautar as desigualdades do Brasil em função da nossa História crítica? Onde e para quem chega a liberdade? Se não abraçarmos a política nosso povo não terá nem a possibilidade de responder a essas perguntas.

 

REFERÊNCIAS:


HAN, Byung Chul. Sociedade do Cansaço. Editora Vozes, 1° edição, 2015.


FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petropólis: Vozes, 1987.


MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. l.1, v. 1.


MARX, KARL. O Manifesto do Partido Comunista. Expressão Popular, 2008.

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