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  • Christian Velloso Kuhn

Tributação de livros e a venda de ilusões pelo Governo Bolsonaro

Atualizado: 25 de jul. de 2021


 

Por Christian Velloso Kuhn

Economista e professor do Instituto PROFECOM

 

Em sua obra mais famosa, Fahrenheit 451, publicada em 1953, Ray Bradbury retrata uma realidade distópica de um mundo no futuro em que as casas não sofrem mais incêndios, e o corpo de bombeiros, ao invés de apagá-los, passam a atear fogo nos livros, que se tornam expressamente proibidos, com exceção dos manuais de instrução[i]. As pessoas, então, desenvolvem o hábito de assistir programas de televisão em telas enormes que ocupam as paredes inteiras, por vezes ocupando um cômodo por inteiro.


Ainda que alguns críticos interpretassem essa metáfora como uma história que aborda sobre a censura, o próprio autor esclarecia que sua finalidade era mostrar como a televisão acabava por diminuir o interesse pela leitura de livros[ii]. Entretanto, a associação com o autoritarismo é compreensível devido à prática de queima de livros observada pela “sistemática destruição de escritos patrocinada pelo Nacional-Socialismo de Hitler e a vigorosa repressão das liberdades encabeçada por Josef Stalin”, muito embora “o evento catalisador para a criação de Fahreheit 451, por Ray Bradbury” tenha sido “a supressão da liberdade artística causada pelo macartismo nos EUA que, segundo ele, chegou próximo de fazer a mímica dos eventos anteriores[iii].


A despeito da gradual ascensão do autoritarismo do Governo Bolsonaro, não obstante tenha sido eleito democraticamente, seu flerte com regimes ditatoriais vem se manifestando em eventos de exaltação da ditadura civil-militar iniciada em 1964 ou de seus fanáticos e transloucados apoiadores clamando a intervenção no STF e até mesmo um autogolpe a ser cometido por Bolsonaro. Felizmente, para nossa sorte, não chegamos a esse ponto de livros serem incendiados em praça pública. Contudo, isso não quer dizer que esses bens estejam sendo devidamente valorizados pelo atual governo.


Uma demonstração disso é a sua iniciativa de desejar a tributá-los. A justificativa que vem sendo propalada pelo governo é sustentada por um documento publicado pela Receita Federal sobre a reforma tributária, que argumenta que, pasmem, “pessoas mais pobres não consomem livros não didáticos”, e por causa disso, esse órgão “defende que os produtos sejam tributados como forma de enfocar políticas públicas[iv].


Em que pese a nossa Constituição impedir a incidência de impostos sobre venda de livros e de papel para impressão, a mesma proibição não ocorre em relação a contribuições. Por esse motivo que a proposta do governo é unificar o PIS e o COFINS na Contribuição Sobre Bens e Serviços (CBS), cuja alíquota seria de 12%. Embora a Lei 10.865 de 2014 tenha isentado livros e papel para fabricação desses bens do pagamento de PIS e COFINS, com a criação dessa nova contribuição, esses produtos deixariam de ser livres de tributação[v].


Conforme exposto acima, o documento da Receita Federal argui que “de acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019, famílias com renda de até dois salários mínimos não consomem livros não didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a dez salários mínimos[vi]. Porém, conforme o advogado tributarista Fernando Raposo Franco[vii], há um viés na seleção dos níveis de renda, pois só trata de dois extratos, desconsiderando famílias com renda acima de dois salários mínimos e abaixo de dez salários. Ademais, a CBS não incidirá tão somente sobre livros não didáticos, os didáticos também sofrerão tributação. Vale ressaltar, de acordo com Franco, que 48% do consumo de livros não didáticos é por famílias com renda inferior a dez salários mínimos, enquanto estes são responsáveis pelo consumo de 70% de livros didáticos e revistas científicas.


Logo, se não podemos afirmar que tal medida inconstitucional ou ilegal, caso seja revogada ou alterada a Lei nº 10.865/2004, é passível de considerá-la imoral e incongruente. Isso porque o governo, recentemente, incentivou e facilitou por meio de decretos a aquisição de armas[viii], bem como reduziu a alíquota do IPI que incide sobre consoles de videogames, acessórios e jogos[ix]. Denota que as prioridades do governo são totalmente distorcidas dos principais problemas historicamente enfrentados pelos brasileiros, como nosso baixo nível educacional e de leitura.


Acrescenta-se a isso a grave conjuntura que enfrenta o mercado editorial brasileiro nos últimos anos, com o fechamento de importantes livrarias e editoras. De acordo com estudo do Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL)[x], principalmente após a recessão econômica iniciada em 2015, no período 2006-2019, o subsetor de livros Científicos, Técnicos e Profissionais sofreu uma retração de 41% nas vendas ao mercado, enquanto os subsetores Obras Gerais e Didáticos tiveram queda de 39% e 23%, respectivamente, em igual período. Para recrudescer ainda mais tal situação, com o advento da pandemia, houve registro de queda de até 49% no faturamento de livrarias, supermercados e lojas de autoatendimento com a venda de livros de abril de 2020[xi]. Com o país precisando de ações que estimulem o crescimento e a retomada econômica, certamente não será onerando ainda mais o segmento editorial.


Igualmente, a tributação de livros agrava a má distribuição e regressividade do nosso sistema tributário, que consoante dados de 2018 da própria Receita Federal (ver figura abaixo), incide mais intensamente sobre Bens e Serviços e Salários, que juntos respondem por mais de 72% da carga tributária brasileira (44,74% e 27,39%, respectivamente). Enquanto isso, o peso tributário sobre Propriedade e Transações Financeiras é de meros 4,64% e 1,60%, respectivamente, totalizando pouco mais de 6%[xii].




Desse modo, alguns bens de luxo, inacessíveis para quem ganha abaixo de 10 salários mínimos, como por exemplo, iates, helicópteros e aviões particulares, não pagam IPVA. Grandes fortunas, igualmente disponíveis apenas para os mais ricos, são beneficiadas por isenção de qualquer tributação. O mesmo ocorre com lucros e dividendos. Por outro lado, as alíquotas que incidem os impostos sobre heranças (varia de 2 a 8%) [xiii] são inferiores, inclusive, aos 12% que a CBS deve onerar os livros, caso seja aprovada de acordo com a vontade do governo.


Resumidamente, mais uma vez, o Governo Bolsonaro usa de subterfúgios e falácias para impor medidas impopulares e quiçá parcamente significativas, que atendem muito mais os interesses de categorias numericamente pouco representativas, sobretudo os mais ricos. Para tanto, vende ilusões que são compradas somente por ingênuos ou identificados com a agenda liberal de Paulo Guedes, como a Reforma da Previdência, apregoada como “bala de prata” para o retorno do crescimento, ao passo que desde então só tivemos ainda mais recessão. Por esse e outros motivos que o atual governo segue gerindo o país num sistema autoritário, plutocrático e aporofóbico, causando caos e insegurança à grande maioria de brasileiros, inclusive aos que ajudaram a elegê-lo. Não surpreenderá se adotar a prática nazista de queimar livros em praça pública.

 

Referências [i] O título do livro remete à temperatura que queima o papel. [ii] https://formigaeletrica.com.br/livros/fahrenheit-451-saindo-da-caverna-de-platao/. [iii] https://www.planocritico.com/critica-fahrenheit-451-de-ray-bradbury/. [iv] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/04/receita-federal-diz-que-pobres-nao-leem-livros-e-defende-aumentar-tributacao.shtml. [v] Uma matéria do Jornal da USP argumenta que é inconstitucional a tributação de livros, embora o artigo 150 fale apenas em impostos e não tributos em geral (que são os impostos, taxas e contribuições). É muito provável que estivessem analisando a possibilidade de criação de um imposto e não de uma contribuição por parte do governo. Para mais, ver https://jornal.usp.br/cultura/tributacao-de-livros-e-inconstitucional-lembram-docentes-da-usp/ [vi] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/04/receita-federal-diz-que-pobres-nao-leem-livros-e-defende-aumentar-tributacao.shtml. [vii] Idem. [viii]https://oglobo.globo.com/brasil/entenda-as-regras-sobre-compra-de-armas-municoes-que-passam-valer-nesta-segunda-feira-24966803. [ix] https://www.contabeis.com.br/noticias/45003/governo-reduz-imposto-sobre-videogames-mas-consumidor-pode-nao-sentir-no-bolso/. [x] https://snel.org.br/wp/wp-content/uploads/2020/07/Serie_Hist%C3%B3rica___14_anos_Pesquisa_Producao_e_Vendas___Vr_0807_.pdf [xi] https://www.publishnews.com.br/materias/2020/11/11/o-mercado-editorial-digital-no-brasil-foi-impactado-de-forma-relevante-pela-pandemia-da-covid-19. [xii] Para mais detalhes, ver https://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf. [xiii]https://www.capitalresearch.com.br/blog/investimentos/imposto-sobre-heranca/.

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