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  • Pedro Henrique Máximo Pereira

Uma introdução necessária ao conceito de Cultura

Atualizado: 10 de out. de 2021

Leitoras e leitores do We,


Este texto é o início de uma longa trajetória conjunta. Uma possível amizade começa a ser traçada entre mim, colunista de Cultura do We, e vocês, leitoras e leitores. Essa amizade, como qualquer outra das tantas que desenvolvemos na vida, é pautada por compromissos implícitos e explícitos, latentes e evidentes, velados e descobertos. Pactos sensíveis de graus variados de confiança e desconfiança permeiam as relações de amizade, em especial aquelas do tipo da que iniciamos a partir deste texto.


Nossa amizade se dará à distância, um modelo comum em tempos turvos como o nosso. Curioso lembrar que esse tipo de amizade não é uma característica somente de nosso tempo. Os livros e cartas do passado já firmavam pactos dessa natureza, cujo veículo de comunicação entre os amigos distantes era o texto. O mais curioso de tudo é que o texto se coloca como um registro paradoxal do tempo. Pode ter sido escrito no passado, para amigos firmados pelos escritores no passado, mas que continuam, ainda hoje, a ampliar o universo de amigos, mesmo que seus autores já não mais existam em carne e osso.


O que mudou ou talvez tenha sido ampliado foi a forma de estabelecimento desse pacto de amizade. Os livros existem. As cartas também. No entanto, essas formas de estabelecimento de laços distantes estão se transformando em estrutura e velocidade. E-books e blogs são exemplos dessas novas – mas, não tão novas assim -, formas de estabelecimento de vínculos de amizade. Chegam mais rápido aos destinatários e são consumidas velozmente. Os pactos de amizade vêm com a digestão daquilo que foi consumido. Segundos, minutos, horas e dias de reflexão e pensamentos podem firmá-los ou negá-los. É possível, também, firmá-lo de início e negá-lo posteriormente, e vice-versa. É possível ainda, como em qualquer vínculo de amizade, firmá-lo, negá-lo e voltar a firmá-lo novamente. Os vínculos de amizade não se dão por regras definidas e leis naturais ou biológicas, mas pelos pactos sensíveis de confiança outrora mencionados.


Identidade e diferença


Os pactos sensíveis de amizade podem se dar pelo prazer da identificação ou pelo estranhamento da diferença. É preciso deixar explícito que nos atraímos ou somos seduzidos por aquilo que somos e por aquilo que não somos. Quando nos vinculamos aos semelhantes, somos tomados pelos sentimentos da identificação, do conforto e da segurança. Quando o oposto ocorre, a diferença se põe como algo novo, uma fronteira a ser atravessada na qual os sentimentos de desajuste, desconforto, insegurança e às vezes medo passam a dominar nossas subjetividades.


Essas sensações são, contudo, muito complexas. A exultada ideia de identificação também pode ser lida como uma prisão que nos foi dada originalmente – e que assumimos como nossa -, cujas chaves das grades estão, paradoxalmente, em nossas mãos. O novo, explícito nas diferenças, ao contrário do imediato significado de aparente ameaça pode ser lido como um estado de liberdade, cujas grades são, progressivamente, abertas por nós mesmos e pelas quais constantemente atravessamos.


Deste modo, a famosa frase “Ser ou não ser, eis a questão”, trazida a nós por William Shakespeare em “Hamlet”, de 1609, talvez expresse a dúvida mais impactante da nossa Era. A projeção dessa indagação do início do século 17 no presente é, senão, a identificação de uma angústia recorrente e persistente a todas e todos.


Afinal, e a Cultura?


Falamos até aqui de cultura. Talvez meus novos amigos e novas amigas não tenham percebido explicitamente, mas o cerne da conversa até aqui estabelecida refere-se diretamente a este conceito. A cultura é normal e erroneamente entendida como sinônimo de arte e de elevação moral. Mas, dentro desse senso comum, não é qualquer expressão artística que pode ser assim nomeada e a ideia de elevação moral se coloca, questionavelmente, como um veículo de distinção social.

No universo das artes, as obras reconhecidas como “culturais” haveriam de estar dentro de um museu ou em galerias renomadas, nos cartazes de peças teatrais ou apresentações musicais de grande público. Nos cinemas, somente as grandes produções, os “clássicos”, poderiam ser assim definidas. Essa tipificação vem acompanhada de uma chancela: publicadas em livros e analisadas cuidadosamente por uma refinada crítica.


A ideia de elevação moral, por sua vez, é questionável. Haveria que se ter um capital cultural tal, capaz de promover a distinção social. Provavelmente todos os novos amigos e amigas já leram ou ouviram falar de “alta cultura”. Essa ideia pressupõe, por oposição sugestiva e lógica, a ideia da existência de uma “baixa cultura”, conhecida amplamente “cultura popular” ou “cultura das massas”. Automaticamente, haveria aquela cultura merecedora de atenção, a “alta cultura”, e aquela ordinária, homogênea, comum ou banal, normalmente identificada como “cultura popular” ou “cultura das massas”, que mereceria pouca atenção e duras críticas.


O conceito, noção ou ideia de cultura que semanalmente analisaremos por aqui se opõe a este senso comum. Procuraremos analisar, à luz de filósofos, sociólogos, historiadores, artistas e antropólogos que discutiram e discutem o tema, as manifestações de cultura em sua compreensão mais ampla.

A cultura ou melhor dizendo as culturas se dão por modos, formas, maneiras ou processos de aquisição e apropriação de hábitos, conhecimentos, saberes, crenças, expressões e habilidades por sujeitos inseridos numa dada sociedade. Os sotaques não são hereditários. Os modos de desenhar, pintar, cantar, dançar e se expressar também não. Há diferentes maneiras de se passar um café na cidade e no campo e são tão variados os seus tipos de preparo quantos forem os lugares onde são consumidos diariamente. A cultura, diferentemente da ideia tosca e caricata do “pum do palhaço”, delineia, como práxis da vida humana, nossos modos de enxergar e agir no mundo[i]. Define como lidamos, no tempo do presente, com as identificações e com as diferenças, bem como nos expressamos com aqueles que nos identificamos e com aqueles com quem divergimos.

Essa compreensão mais ampla e menos alegórica é clássica nos estudos culturais e merece destaque nesta coluna. A cultura, por princípio, é antagônica ao biológico e ao hereditário. Não pode ser adquirida ou perpassada em genes, mas se dá por meio do contato social e vida em sociedade. Ocorre como se dá um processo consciente e inconsciente de estabelecimento de amizades. Os amigos não estão dados por laços de sangue. Às vezes podemos escolhê-los, mas, na maioria das vezes, ocorrem pelo fecundo poder da sedução da identificação, da diferença ou de ambos.


Deste modo, não somente a arte cabe ao conceito de cultura. Muito menos deve prevalecer a ideia hegemônica, elitista e distintiva de elevação moral como mecanismo de diferenciação social. Se há, portanto, trânsito de saberes, conhecimentos, expressões e modos de fazer e se expressar, e se há, acima de tudo, trocas, aquisição ou apropriação, há cultura.

Eu, por princípio e por estar aqui nesta coluna, estou aberto ao novo, ao distante, à diferença e à identificação. Por consciência de que sou um sujeito culturalmente desenhado, assim como você, minha mais cara nova amiga e meu mais caro novo amigo, estou aberto ao diálogo e às trocas. Prefiro a possibilidade do trânsito permanente entre a segurança e a liberdade do que escolher somente um destes universos.

Afinal, tudo é cultura!

Sejam bem-vindas e bem-vindos à Coluna de Cultura do We!


 

[i] https://omundoliquido.com/cultura-na-otica-de-zygmunt-bauman-ambiguidade-ilusao-e-praxis/

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